Ao falar de Marx, é preciso olhar para frente
Alguém já deve ter dito, em tom de ironia, mas sem se
distanciar da verdade, que o problema não é Marx, mas, sim, o que os marxistas
- em especial, Lenin - fizeram ou fazem com ele e com as suas ideias. Se ninguém disse,
está dito agora. É impossível não reconhecer a importância de Marx para a
filosofia política e para a história do pensamento. Porém, atribuir toda a
responsabilidade pelos equívocos do marxismo aos seus seguidores não seria honesto.
Marx fez um diagnóstico preciso
da exploração humana ao estruturar o conceito de mais valia (magistralmente descrito em O Capital). O
diagnóstico contribuiu de forma decisiva para que as gerações seguintes - e não
apenas os marxistas - passassem a idealizar um mundo mais justo, onde
prevalecessem princípios e mecanismos que pudessem reduzir desigualdades.
O equívoco, que perdura até os nossos dias, está em
transformar o marxismo e sua dialética materialista em ciência - mais
precisamente, numa "ciência exata", uma verdade absoluta, que coloca
a dinâmica de evolução da humanidade numa camisa de força, na qual é
irremediável e irreversível o advento de uma ditadura do proletariado. Numa
etapa subsequente a essa ditadura (que nenhum marxista arrisca dizer quando
terminaria), se alcançaria uma sociedade sem classes e sem Estado, onde reina a
harmonia e a paz.
Marx foi lido e adotado como teórico da economia, e não como filósofo político. O resultado foi
devastador. Engendrou uma teoria para explicar o mundo em que as regras
econômicas (em outras palavras, as regras de mercado, que refletem os anseios
dos indivíduos) não precisariam ser respeitadas. O Estado proletário definiria
a necessidade e a capacidade de cada um. Até se chegar ao "nirvana",
que nunca aconteceu.
Se foi visionário por um lado, foi reducionista ao
extremo por outro: restringiu as relações sociais à luta de classes, que seria o ponto de partida
para explicar todo o resto.
A União Soviética e o bloco comunista ruíram muito antes de
chegar à tão sonhada sociedade próspera e justa. E ruíram pela ineficácia de uma
economia estatal planificada, que não observava as regras de mercado. A China comunista não ruiu, mas, para sobreviver, abraçou o capitalismo
- o pior tipo de capitalismo possível, o de Estado, intrinsecamente
autoritário. Esses, porém, são apenas aspectos evidentes do colapso do
modelo.
O mais inconsistente na doutrina marxista é a
suposição de que, após um período de recondicionamento forçado - ou seja, após
a ditadura do proletariado, em que todos seriam tratados de forma igual -
surgiria um novo homem, mais solidário e pacífico, e com ele uma sociedade em
total harmonia, que prescindiria do Estado. Acreditar nisso é negar a própria natureza do homem,
com suas virtudes e seus vícios, que variam de indivíduo para indivíduo.
Exatamente por essa razão, o moralmente certo não é que todos sejam tratados de
forma igual, mas que tenham oportunidades iguais e, a partir daí, recebam em
função de seu mérito.
No Estado proletário, a
liberdade é mitigada em prol da igualdade. Mas, ao definir o que cada um deve
receber, aniquila-se o que é essencial no indivíduo: o desejo de prosperar e criar
("se já sei o que me caberá, para que me esforçar?"). É uma fórmula
deletéria, que obsta o progresso. A igualdade de condições, como ponto de
partida é ética e justa. Mas a igualdade como valor absoluto, padronizando
resultados de pessoas com aptidões, contribuições e esforços distintos, é incomparavelmente
cruel.
A dialética marxista não é e não poderia ser
científica como propugnaram seus defensores. A "sociedade burguesa"
que superou o Antigo Regime não seria irremediavelmente derrotada pela classe
operária. Essa não era uma trajetória irreversível. Não ocorreu, como previram. E não ocorreu precisamente porque
não era ciência, como acreditavam ou fingiam acreditar.
Se fosse ciência, não exigiria sequer revolução. Não implicaria luta armada, como se viu mundo afora ao longo do século passado. Não seriam necessários revolucionários pegando em armas - alguns deles os mais sanguinários líderes da história da
humanidade. A doutrina não supera a
natureza humana. O fato de líderes comunistas adotarem hábitos
burgueses quando chegam ao poder, não raro mergulhando no mais desenfreado e
moralmente condenável consumismo, é ilustrativo, além de irônico.
O capitalismo não entrou em colapso, como previu o
marxismo - o que ocorreu foi justamente o oposto. Mas antes de o comunismo
chegar ao fim, com o desmoronamento do Bloco Soviético, o capitalismo já havia se
transformado: não era mais aquele do século XIX, de Karl Marx. Uma transformação que deve ter prosseguimento. O mundo não precisa de revoluções, sempre dramáticas
e trágicas, mas de reformas. Reformas permanentes. E elas podem e devem ser
feitas com liberdade. As rupturas não são pré-condição para
o avanço da humanidade. A própria Revolução Francesa foi um desperdício
de vidas, a pior das barbáries, em pleno Século das Luzes.
Durante a Guerra Fria da segunda metade do século XX, o
trabalhador dos países industrializados ocidentais, capitalistas, gozava de
melhores condições de vida do que seu colega do outro lado da "Cortina de
Ferro". O operário sul-coreano vive melhor do que o seu "compatriota"
do Norte. Alguém duvida?
Não houve fuga de americanos da
Flórida para viver no "paraíso cubano" após a revolução liderada por
Fidel Castro e Che Guevara. O que se viu foram cubanos desesperados deixando para trás, em precárias
balsas, a ditadura insular. Não se tem notícias de que, antes da queda do muro,
alemães ocidentais fugiam para o lado ocidental, enquanto o fluxo inverso está
fartamente documentado. Com o fim da divisão na Alemanha, o que prevaleceu foi
o modelo capitalista do lado de cá, mais eficiente em gerar prosperidade e bem
estar social. O BMW é superior ao Trabant.
O controle das grandes empresas hoje está pulverizado
por milhares, às vezes milhões de pessoas, inclusive operários, que, indiretamente,
detêm participações em sociedades empresárias. Quem é o dono da Embraer? Uma
pessoa de poucas posses pode ela também ter o seu negócio em qualquer país do
mundo onde prevaleça princípios democráticos. Se o princípio é lícito para o pequeno, deve valer para o grande, que emprega mais e produz mais riquezas. Por que frear o ímpeto empreendedor?
O conceito de mais valia é importante do ponto de
vista histórico, mas mostrou-se inadequado para reger o mundo. Tornou-se uma visão
minimalista, empobrecedora. Do ponto de vista prático, engessa a atividade
econômica, que é algo fundamental para o bem estar social. O empreendedor que
assume riscos, investe e organiza a força de trabalho deve ser remunerado por
seu empenho. Empresas são fundamentais para o desenvolvimento econômico, para a
geração de empregos e renda. Cumprem com eficiência um papel para o qual o Estado é inpeto, como ficou demonstrado ao longo da história. Os indivíduos precisam das empresas.
As próprias relações sociais se transformaram e se
diversificaram. Não é mais possível dividir o mundo entre empresário e
trabalhador, e a partir dessa dicotomia impor teorias e modelos rígidos. Seguir
idealizando um mundo a partir do ponto de vista marxista - o ponto de vista da
luta de classes - é ir no sentido contrário à corrente natural da história, que
não chegou ao fim com a "revolução universal", como pretendiam os
marxistas. Partidos e políticos que ainda compartilham essa visão representam o atraso. É preciso olhar para frente.
Por Nilson Mello
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