terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Ensaio

Ao falar de Marx, é preciso olhar para frente


    Alguém já deve ter dito, em tom de ironia, mas sem se distanciar da verdade, que o problema não é Marx, mas, sim, o que os marxistas - em especial, Lenin - fizeram ou fazem com ele e com as suas ideias. Se ninguém disse, está dito agora. É impossível não reconhecer a importância de Marx para a filosofia política e para a história do pensamento. Porém, atribuir toda a responsabilidade pelos equívocos do marxismo aos seus seguidores não seria honesto. 
    Marx fez um diagnóstico preciso da exploração humana ao estruturar o conceito de mais valia (magistralmente descrito em O Capital). O diagnóstico contribuiu de forma decisiva para que as gerações seguintes - e não apenas os marxistas - passassem a idealizar um mundo mais justo, onde prevalecessem princípios e mecanismos que pudessem reduzir desigualdades.
    O equívoco, que perdura até os nossos dias, está em transformar o marxismo e sua dialética materialista em ciência - mais precisamente, numa "ciência exata", uma verdade absoluta, que coloca a dinâmica de evolução da humanidade numa camisa de força, na qual é irremediável e irreversível o advento de uma ditadura do proletariado. Numa etapa subsequente a essa ditadura (que nenhum marxista arrisca dizer quando terminaria), se alcançaria uma sociedade sem classes e sem Estado, onde reina a harmonia e a paz.
    Marx foi lido e adotado como teórico da economia, e não como filósofo político. O resultado foi devastador. Engendrou uma teoria para explicar o mundo em que as regras econômicas (em outras palavras, as regras de mercado, que refletem os anseios dos indivíduos) não precisariam ser respeitadas. O Estado proletário definiria a necessidade e a capacidade de cada um. Até se chegar ao "nirvana", que nunca aconteceu.
    Se foi visionário por um lado, foi reducionista ao extremo por outro: restringiu as relações sociais à luta de classes, que seria o ponto de partida para explicar todo o resto. A União Soviética e o bloco comunista ruíram muito antes de chegar à tão sonhada sociedade próspera e justa. E ruíram pela ineficácia de uma economia estatal planificada, que não observava as regras de mercado. A China comunista não ruiu, mas, para sobreviver, abraçou o capitalismo - o pior tipo de capitalismo possível, o de Estado, intrinsecamente autoritário. Esses, porém, são apenas aspectos evidentes do colapso do modelo.
    O mais inconsistente na doutrina marxista é a suposição de que, após um período de recondicionamento forçado - ou seja, após a ditadura do proletariado, em que todos seriam tratados de forma igual - surgiria um novo homem, mais solidário e pacífico, e com ele uma sociedade em total harmonia, que prescindiria do Estado. Acreditar nisso é negar a própria natureza do homem, com suas virtudes e seus vícios, que variam de indivíduo para indivíduo. Exatamente por essa razão, o moralmente certo não é que todos sejam tratados de forma igual, mas que tenham oportunidades iguais e, a partir daí, recebam em função de seu mérito.
    No Estado proletário, a liberdade é mitigada em prol da igualdade. Mas, ao definir o que cada um deve receber, aniquila-se o que é essencial no indivíduo: o desejo de prosperar e criar ("se já sei o que me caberá, para que me esforçar?"). É uma fórmula deletéria, que obsta o progresso. A igualdade de condições, como ponto de partida é ética e justa. Mas a igualdade como valor absoluto, padronizando resultados de pessoas com aptidões, contribuições e esforços distintos, é incomparavelmente cruel.
    A dialética marxista não é e não poderia ser científica como propugnaram seus defensores. A "sociedade burguesa" que superou o Antigo Regime não seria irremediavelmente derrotada pela classe operária. Essa não era uma trajetória irreversível. Não ocorreu, como previram. E não ocorreu precisamente porque não era ciência, como acreditavam ou fingiam acreditar.
    Se fosse ciência, não exigiria sequer revolução. Não implicaria luta armada, como se viu mundo afora ao longo do século passado. Não seriam necessários revolucionários pegando em armas - alguns deles os mais sanguinários líderes da história da humanidade. A doutrina não supera a natureza humana. O fato de líderes comunistas adotarem hábitos burgueses quando chegam ao poder, não raro mergulhando no mais desenfreado e moralmente condenável consumismo, é ilustrativo, além de irônico. 
    O capitalismo não entrou em colapso, como previu o marxismo - o que ocorreu foi justamente o oposto. Mas antes de o comunismo chegar ao fim, com o desmoronamento do Bloco Soviético, o capitalismo já havia se transformado: não era mais aquele do século XIX, de Karl Marx. Uma transformação que deve ter prosseguimento. O mundo não precisa de revoluções, sempre dramáticas e trágicas, mas de reformas. Reformas permanentes. E elas podem e devem ser feitas com liberdade. As rupturas não são pré-condição para o avanço da humanidade. A própria Revolução Francesa foi um desperdício de vidas, a pior das barbáries, em pleno Século das Luzes.
    Durante a Guerra Fria da segunda metade do século XX, o trabalhador dos países industrializados ocidentais, capitalistas, gozava de melhores condições de vida do que seu colega do outro lado da "Cortina de Ferro". O operário sul-coreano vive melhor do que o seu "compatriota" do Norte. Alguém duvida?
    Não houve fuga de americanos da Flórida para viver no "paraíso cubano" após a revolução liderada por Fidel Castro e Che Guevara. O que se viu foram cubanos desesperados deixando para trás, em precárias balsas, a ditadura insular. Não se tem notícias de que, antes da queda do muro, alemães ocidentais fugiam para o lado ocidental, enquanto o fluxo inverso está fartamente documentado. Com o fim da divisão na Alemanha, o que prevaleceu foi o modelo capitalista do lado de cá, mais eficiente em gerar prosperidade e bem estar social. O BMW é superior ao Trabant.
    O controle das grandes empresas hoje está pulverizado por milhares, às vezes milhões de pessoas, inclusive operários, que, indiretamente, detêm participações em sociedades empresárias. Quem é o dono da Embraer? Uma pessoa de poucas posses pode ela também ter o seu negócio em qualquer país do mundo onde prevaleça princípios democráticos. Se o princípio é lícito para o pequeno, deve valer para o grande, que emprega mais e produz mais riquezas. Por que frear o ímpeto empreendedor?
    O conceito de mais valia é importante do ponto de vista histórico, mas mostrou-se inadequado para reger o mundo. Tornou-se uma visão minimalista, empobrecedora. Do ponto de vista prático, engessa a atividade econômica, que é algo fundamental para o bem estar social. O empreendedor que assume riscos, investe e organiza a força de trabalho deve ser remunerado por seu empenho. Empresas são fundamentais para o desenvolvimento econômico, para a geração de empregos e renda. Cumprem com eficiência um papel para o qual o Estado é inpeto, como ficou demonstrado ao longo da história. Os indivíduos precisam das empresas.
   As próprias relações sociais se transformaram e se diversificaram. Não é mais possível dividir o mundo entre empresário e trabalhador, e a partir dessa dicotomia impor teorias e modelos rígidos. Seguir idealizando um mundo a partir do ponto de vista marxista - o ponto de vista da luta de classes - é ir no sentido contrário à corrente natural da história, que não chegou ao fim com a "revolução universal", como pretendiam os marxistas. Partidos e políticos que ainda compartilham essa visão representam o atraso. É preciso olhar para frente. 

Por Nilson Mello



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