O mentiroso digno e o delator irônico
A confissão egoísta
A figura de Pinóquio ganhou força nos
últimos dias com a instauração da CPI da Petrobras, as suas primeiras
audiências e as novas revelações feitas por corruptos confessos em seus
depoimentos no âmbito da Operação Lava Jato. Mas a referência tem razões
inversas.
O personagem do italiano Carlo Collodi (Le avventure di Pinocchio, de 1883) é universal e - a exemplo de todo grande personagem da
literatura - mantém-se perene por força de seu grande caráter. Sim, o que chama
a atenção no célebre mitômano é, paradoxalmente, a sua dignidade, razão pela
qual ele conquistou a simpatia do público. Ele não é o antagonista, não é um
Mephisto, mas o próprio herói do romance.
Mentir, todo ser humano o faz, dizem os
cientistas, várias vezes ao dia, em maior ou menor grau, a ponto de algumas
correntes da Filosofia reconhecerem que a mentira, em determinadas
circunstâncias, pode até ser ética. Não? Vejamos: mentir para evitar um
atentado terrorista, por exemplo.
Mas é preciso dignidade
singular para se trair a cada mentira, algo que o boneco de madeira criado pelo
entalhador Geppetto faz com distinção. Pinóquio, com seu nariz revelador, é um ser
transparente mesmo
quando tenta ser dissimulado. Ser verdadeiro é algo que está além de sua
vontade e de suas forças. Pode haver prova mais genuína de caráter?
Nos depoimentos obtidos nas
delações premiadas da Lava Jato deve haver algumas lorotas, mas é presumível
que a maior parte do que tem sido dito por personagens como Paulo Roberto
Costa, Alberto Yousseff e, mais recentemente, Pedro Barusco - o gerente da Petrobras que sozinho colocou US$ 97 milhões na Suíça! - seja verdade.
Eis aí o contraste com Pinóquio.
No caso, a verdade é uma imposição,
uma questão de sobrevivência: escondê-la, neste estágio, significaria penas severas. Os três são, neste sentido, a antítese de
nosso herói. Este tentava mentir para auferir alguma vantagem, mas a sinceridade o traía, ainda que de forma oblíqua. O personagem de Collodi é, sem querer, um altruísta.
Costa, Yousseff e Barusco, por
sua vez, contaram a verdade (ou uma meia-verdade ou parte da verdade) por
questões egoístas. Ainda que seus depoimentos venham a contribuir para
esclarecer o gigantesco esquema de desvio de recursos que colocou a maior
estatal do país de joelhos, esse terá sido, pela ótica e pela lógica dos depoentes, o efeito colateral - o
que os moveu foi a autopreservação, o instinto de sobrevivência, não o
altruísmo.
Em relação ao depoimento de
Pedro Barusco esta semana na CPI da Câmara, em particular, o contraste é ainda
maior. Barusco foi enfático na reiteração das denúncias que fez à Justiça. Não se percebia em seu semblante, no tom da voz, na
linguagem corporal
quaisquer resquícios de vergonha ou de arrependimento. E isso é estarrecedor.
O esquema de propina vinha
dando certo desde 1997/1998 (US$ 97 milhões na Suíça!), como afirmou, mas, uma
vez flagrado, tratou de salvar a pele, confessando.
Diante das câmeras, com
transmissão ao vivo, e de centenas de pessoas na plateia, entre parlamentares e jornalistas, não enrubesceu,
não se emocionou, não titubeou. O ar de playboy, reforçado pelo cabelo mais
longo, puxado para trás da nunca à base de brilhantina, e as roupas de grife (com as quais é visto nas fotos
publicadas
nos jornais), contribuem para compor a imagem de frieza, com um viés irônico
incompatível com a circunstância.
Diante da dimensão do
prejuízo que o esquema de roubalheira a que Barusco estava associado produziu a ironia
inoportuna, que beira o deboche, deveria justificar a suspensão dos benefícios
da delação premiada. A sua postura chocou tanto ou mais que o conteúdo de seu
depoimento. Quem dera tivéssemos mais Pinóquios na crônica política brasileira.
Por Nilson Mello
Em tempo:
Uma coisa é a
corrupção, sempre condenável, não importa em que grau. Outra, bem mais grave, é
a corrupção sistematizada, estruturada em conluio com políticos e partidos políticos,
e a serviço de um projeto de poder.
Em tempo II:
Impeachment? No contexto, poderia gerar (mais)
insegurança institucional, o que seria prejudicial no momento em que o governo
toma medidas - sobretudo na política macroeconômica - indispensáveis para
corrigir os (muitos) erros e desarranjos cometidos no primeiro mandato.
Além disso, seria injusto deixar para terceiros
o conserto dos erros que são de responsabilidade deste governo, mas,
principalmente, porque nada garante que o "herdeiro do trono" teria condições (ou vontade política) para
prosseguir nos duros, porém, inadiáveis ajustes ora iniciados.
Por fim, o impeachment permitira ao
PT assumir o papel de vítima - algo que muito lhe agrada e que lhe seria
conveniente. Mais uma razão para ser desconsiderado no momento.
Contudo, é
preciso lembrar que processos de impeachment são um instrumento do jogo
democrático, decididos de forma legítima, com amparo nos poderes constituídos,
sobretudo o Legislativo. Ou alguém acha que o impeachment de Collor foi um
golpe contra a democracia?
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