Genealogia do voto
Ministra Carmem Lucia
Alto índice de abstenção é um fenômeno que pode dar margem a interpretações e
diagnósticos diametralmente opostos. Nas 50 cidades onde houve um segundo turno
nas eleições municipais este ano, as abstenções alcançaram o índice recorde
de 19%. Isso significa que dos 31,7 milhões de brasileiros aptos a votar
na ocasião, seis milhões prefiriram nem ir às urnas. Não é pouco: uma metrópole
inteira como o Rio, ou a metade da população de Portugal.
Se somadas as abstenções aos votos nulos e em branco, que totalizaram 7,44% do
total (ou 2,3 milhões de pessoas), o índice chega a 26% do eleitorado. Sugere o
senso comum que votos nulos, via de regra, indicam rejeição à classe política,
aos postulantes e aos governantes. Exceto nos casos em que decorre de erro
grosseiro – resultado da inépcia do prórprio eleitor - algo impossível de se
identificar ou confirmar.
Os votos brancos, por sua vez, podem até ser
também decorrentes de displiscência, mas mais razoável é supor que revele
acomodação do eleitor ou, na pior das hipóteses, indiferença com o cenário
político, o que não deixa de ser uma aprovação oblíqua, muito embora, pela
legislação, esses votos não possam ser computados para nenhum partido ou
candidato. O aspecto estatístico, que dá margem a elacubrações como a do
presente artigo, é, na verdade, o que expressa o valor dos votos nulos e
brancos.
Abstenções, contudo, podem traduzir anseios
mais complexos e sutis. Para um observador otimista, a fuga das urnas poderia
significar um alto grau de satisfação com o desempenho dos governantes e com os
serviços prestados pelo Estado, o que desencojararia a alternância de poder e a
mobilização para tanto. Se no branco a aprovação é escamoteada, na abstenção
ela seria explícita.
O saneamento é de boa qualidade, bem como a
educação, os transportes, a saúde e os demais serviços públicos em minha
cidade, então por que eu devo ir votar? Mesmo obrigado, não irei, pensaria o
satisfeito.
Em caso das eleições federais e estaduais, a
medida do grau de satisfação pode ainda ser dada por fatores como bons
indicadores na economia e na segurança pública. E em todos os casos, nos
pleitos municipais, estaduais e federais, pela capacidade do governante ou
postulante de seduzir e, por que não dizer?, ludibriar o eleitor – postura cujo
êxito dependerá diretamente da capacidade crítica dos votantes.
Para o pessimista, por outro lado, a
abstenção é prova cabal do enfado do eleitor com “tudo isso que está aí”. Sou
obrigado a votar, mas votar em quem? E por quê? Nessa linha de raciocínio diríamos
que, no voto nulo e no voto em branco, o eleitor tenta fazer o seu protesto –
um protesto indireto e sem qualquer efeito, vá lá, mas ainda assim uma
tentativa de manifestação crítica. Já a abstenção seria a desilusão completa
com a política.
Para o analista pessimista, a abstenção numa
democracia de voto obrigatório, ou, para usar o eufemismo tão caro aos
constitucionalistas, num sistema em que o voto é um “direito-dever” (pode haver
contradição em termos maior que essa?), representa o momento em que o
eleitorado joga a toalha de vez, tamanho o desânimo.
Sem descartar a possibilidade de a robusta
estatistica da abstenção ter sido decorrência de falhas de recadastramento, a
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Carmen Lúcia Rocha, acredita
que a fuga das urnas é preocupante porque põe em risco o princíppio da
representatividade, pilar do sistema democrático.
A ênfase da precoupação da ministra, por
força da função, se dá em relação a um princípio que, para todos os efeitos, é
uma ficção. Pois, num universo de baixa escolaridade, a representatividade não
se traduz em qualidade. E mesmo com altos índices de comparecimento às urnas,
nada mais significa do que um contingente maior de pessoas sujeito a se
transformar em massa de manobra eleitoral.
O que corrói a representatividade no Brasil
não é a abstenção, ma o seu vício de origem, ou seja, o perfil do votante,
agravado pelo voto obrigatório.
Por Nilson Mello
P.S.: Uma pessoa que lê regular e atentamente
este Blog (?!), a quem muito prezo, me recrimina por abusar das vírgulas nos
textos. Prometo melhorar.
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