A
pandemia e o comércio marítimo
No
cenário nebuloso que o Brasil enfrenta em função da pandemia de Covid-19,
algumas certezas vão se consolidando, todas com direta relação com a atividade portuária
e o transporte marítimo. A primeira delas é que a crise econômica resultante
será maior do que a de 2008, conforme já apontam organismos internacionais e
autoridades monetárias mundo afora. A segunda é que países emergentes, como o
Brasil, grande exportador de commodities, serão mais fortemente afetados, em
decorrência da queda de demanda por matérias-primas, principalmente da China,
onde a atividade econômica já sofreu redução de 6,8% do PIB no primeiro
trimestre.
A terceira certeza que se firma é a de que o
governo agiu corretamente ao deixar o equilíbrio fiscal momentaneamente em
segundo plano para adotar um “orçamento de guerra”, com gastos da ordem de R$
R$ 212 bilhões (2,9% do PIB). Com a decretação do estado de calamidade, o
déficit fiscal deste ano pôde ser legalmente elevado, de R$ 124,1 bilhões para
R$ 419,2 bilhões.
Com
muitas medidas ainda sujeitas à aprovação no Congresso, o pacote abrange
programas de transferência de renda e alívio fiscal temporário para empresas,
em especial micros e pequenas - que são as que mais empregam -, além de injeção
direta de R$ 8 bilhões para gastos em saúde, auxílio para trabalhadores
informais e autônomos, liberação antecipada do FGTS, linhas especiais de
crédito, desoneração temporária do IOF, redução de uma série de contribuições,
refinanciamento de dívidas de estados e municípios, e aumento da liquidez do
setor financeiro, a partir da redução de depósitos compulsórios, entre outras.
Ainda
assim, a nossa atividade econômica, que seguia uma tênue recuperação, deverá
ter um recuo de 5% este ano, senão maior, enquanto a queda no PIB global,
segundo o FMI, deverá ser de 3%, confirmando as previsões mais pessimistas
feitas em início de fevereiro. Isso faz com que, nessas variáveis que se
consolidam em relação ao cenário, citadas acima, acrescentemos um quarto ponto
que merece ser assimilado como meta a ser retomada no médio prazo, sob o risco
de termos, logo à frente, uma conjuntura mais complexa e desafiadora, com
dificuldades ainda maiores de recuperação.
Trata-se
justamente das medidas visando à reconstrução do equilíbrio fiscal e à melhor
gestão orçamentária, o que passa pelo encaminhamento da Reforma Administrativa,
indispensável à reestruturação da máquina pública. Esse é o caminho que
permitirá que no futuro mais recursos sejam destinados a áreas essenciais, como
saúde, educação, segurança e infraestrutura. Na sequência, uma Reforma
Tributária passa igualmente a ser urgente, a fim de dar mais racionalidade ao
sistema, abrindo espaço para a progressiva redução da carga, o que depende, em
grande medida, da própria reestruturação da máquina pública.
Para
se ter noção da importância desse reequilíbrio fiscal, vale dizer que, com
as medidas de socorro econômico adotadas
pelo pacote do governo este ano – ressalte-se, indispensáveis -, a dívida
pública bruta brasileira alcançará 98,2% do PIB, em contraste com uma a
previsão inicial de 93% e contra 89,5%, em 2019. Representando praticamente a
totalidade do PIB, a despeito da Reforma da Previdência, já realizada, e de uma
série de medidas adotadas nos últimos anos para conter as despesas
discricionárias correntes, esse patamar é perigosamente elevado. Cabe dizer
que, embora esteja abaixo do de alguns países desenvolvidos - que têm maior
capacidade de financiamento de seus déficits -, está bem acima dos países da
América Latina (em média, 78% do PIB) e dos emergentes (62%), incluindo a
China.
Hoje
todos nós sabemos que quanto maior a dívida, maiores as incertezas. No nosso
caso, o histórico de crescimento da dívida pública embute outro problema,
relacionado à má qualidade dos gastos ao longo de décadas, com ênfase no
custeio de uma máquina muito dispendiosa - e invariavelmente pouco eficiente -,
em detrimento de mais investimentos em áreas essenciais, como a infraestrutura,
o que só reforça a necessidade de reversão dessa lógica por meio de uma Reforma
Administrativa. É não apenas uma questão de ordem prática, mas moral.
Tivéssemos investido pesadamente em hospitais e saúde, por exemplo, certamente
estaríamos mais equipados neste momento para enfrentar a pandemia.
A
infraestrutura não poderá ser negligenciada na retomada do crescimento. Na
verdade, ela faz parte do arsenal com o qual o país conta para promover essa
recuperação e deve estar entre as prioridades contemplares às medidas
econômicas emergenciais. Os sinais de que o comércio exterior brasileiro já foi
significativamente afetado pelos efeitos da pandemia, com repercussão negativa
na atividade portuária e no transporte marítimo, são nítidos. Com a redução das
importações, mormente provenientes da China, devido à queda de produção e de
demanda interna, em abril houve diminuição significativa de movimentação de
cargas nos Portos de Santos, Navegantes, Itajaí e Suape, entre outros, em
contraste com o bom desempenho no início do primeiro trimestre.
A
alta do dólar, fator que também prejudica as importações, permitiu ao mesmo
tempo uma relativa melhora das exportações no último mês, sobretudo grãos, mas
o cenário ideal seria o de crescimento das duas vias. Isso porque o comércio
exterior precisa trabalhar de forma orgânica, para que seu crescimento seja
sustentável e consistente. Válido é sempre lembrar que a diminuição das
importações pode, por sua vez, acarretar problemas pontuais relacionados à
falta de contêineres vazios para os embarques destinados ao exterior.
Prevenindo um gargalo que pudesse prejudicar exportadores, armadores de peso
internacional já começaram a remanejar contêineres para o Brasil. Num momento
de crise, essa logística torna-se mais complexa, sobretudo em decorrência dos
cancelamentos de escalas que ocorrem em todo mundo, e por isso mesmo reveste-se
de ainda maior importância.
Nesse jogo de perdas globais, questões
momentâneas que afetam outras nações podem igualmente favorecer o Brasil, como
é o caso da quarentena de 14 dias decretada pela China a tripulações de navios
de 153 bandeiras (num total de 500 embarcações e 7 mil tripulantes). Como não
estamos incluídos na restrição, isso pode representar redirecionamento de
demanda para nossos portos. Mas não é com vantagens aleatórias que o país deve
contar. Até porque, os problemas com os quais nos deparamos são sistêmicos e de
amplo espectro. A cadeia produtiva é um
termômetro confiável. Pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) realizada
este mês, por exemplo, indica que 67% dos empresários relatam queda na demanda
por serviços de transporte de forma geral.
Algumas
medidas devem estar no nosso horizonte. No curto prazo, dentro do pacote de
providências do governo para enfrentamento da pandemia, seria razoável estudar
benefícios temporários para terminais portuários e empresas de navegação, a
exemplo do que está sendo feito para os setores aéreo e de turismo.
Paralelamente, é preciso rever os bloqueios rodoviários, que dificultam a
circulação de cargas até os portos. No médio prazo, é indispensável seguir
apostando nas referidas reformas, pois são elas que tornarão nossa maquina
pública mais eficiente, desonerando a economia. Vale dizer que a pandemia de
Covid-19 serviu para mostrar a importância do Estado no enfrentamento de
crises. Quanto mais eficiente for esse Estado, melhores serão os resultados em
prol da sociedade.
Por
fim, no longo prazo, a exemplo do que todo o mundo já esboça fazer, é
imperativo repensar a nossa dependência do produto Made in China. O Brasil
precisa ter uma estratégia para a revitalização de seu setor industrial, e ela
deve estar alinhada a uma política de maior inserção global. Não faz sentido
que a oitava economia do mundo se contente em ter participação ínfima (de 1,1%)
no comércio global e siga sendo mero exportador de matéria-prima extrativa,
como no tempo colonial. Longe de preconizarmos um dirigismo industrial, que
sempre anda na contramão da eficiência e da competitividade, é mais do que hora
de repensarmos uma política de revitalização de nossa indústria, centrada nas
novas tecnologias, sob pena de nos tornamos, na prática, uma província
ultramarina chinesa.
Por Nilson MelloObs: Este artigo foi publicado originariamente no Portal da PortoGente, em https://portogente.com.br/noticias/opiniao/111803-a-pandemia-e-o-comercio-maritimo?fbclid=IwAR0NEwlCjl9iv1urlQM_PBkmoPVDvEqsZQTpR8TYiCtVCkOlmAyFH_iOYnM
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