Nilson Vieira Ferreira de
Mello Jr.*
Não apenas entre tributaristas e
economistas, mas entre cientistas sociais de forma geral, guardadas as devidas
exceções, há consenso de que a justiça tributária – ou justiça fiscal – só pode
ser alcançada por meio do desigual tratamento dado pelo Estado a contribuintes
em condições desiguais. Assim, em termos tributários, nada é mais injusto que
tratar igualmente cidadãos com níveis de renda distintos.
Deste corolário decorre o respeito à
capacidade contributiva, princípio fundamental (§ 1º do art. 145, da Constituição) que impede que o
Estado, no seu inafastável dever de tributar, onere o cidadão além de suas
possibilidades financeiras, comprometendo o mínimo necessário à sua
subsistência e a de sua família.
Não
é demais lembrar que o dever do Estado de tributar é inafastável porque de sua atuação
fiscal depende, em última análise, a própria organização da vida em sociedade. Neste
sentido, por Estado devemos entender um ordenamento jurídico destinado a
exercer o poder soberano sobre um determinado território, ao qual se subordina um grupo de indivíduos.
Em estados democráticos, o poder de tributar está permanentemente delimitado
pelos direitos e garantias constitucionais, devendo resultar de uma competência
específica atribuída pelo legislador, em consonância com as expectativas do
eleitor. No caso brasileiro, esta competência encontra previsão, entre outros
dispositivos, no art. 145 da Constituição, que estabelece a sistemática de
tributos a serem cobrados, e nos arts. 153 e 156, que distribuem essa
competência entre os entes federados. Em outras palavras, este poder de tributar não é absoluto.
De
volta ao princípio da capacidade contributiva, é oportuno lembrar que sua
conceituação não é recente e tampouco inerente, de forma exclusiva, a doutrinas
de caráter mais intervencionista ou de viés socializante. Adam Smith, pai do
liberalismo econômico, já afirmava em sua célebre obra A riqueza das Nações,
de 1776, que os súditos de todos as nações devem contribuir para a manutenção
do Estado “tanto quanto possível, em proporção às suas respectivas
capacidades”.
O
conceito mantém-se atual nas monarquias parlamentares, bem como em regimes
republicanos contemporâneos, onde o indivíduo não é súdito da coroa, mas cidadão
com direitos e obrigações em relação ao Estado, entre eles o de pagar tributos
e receber, em contrapartida, serviços públicos de qualidade, tais como
segurança, saúde e educação.
À
capacidade contributiva, tão relevante para a justiça fiscal, vincula-se outro
princípio, o da progressividade, historicamente reconhecido em nosso
ordenamento e com previsão constitucional explícita aplicada ao Imposto de
Renda (art. 153, § 2º, inciso I).
No
Código Tributário Nacional (CTN), os dois princípios, conjugados, são adotados
de forma indireta, sobretudo no tratamento fiscal dado àqueles tributos que
permitem a personalização da carga tributária, casos não apenas do mencionado IR
como do Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), do
Imposto Territorial Rural (ITR), e do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e
Doação (ITCMD).
Com
a reforma tributária, o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores
(IPVA) também passou a ter alíquotas progressivas de acordo com valor do
veículo. O automóvel de luxo, portanto, pagará mais IPVA que o popular, o que
parece justo.
Assim,
pela progressividade, quanto maior a base de cálculo (da renda, receita ou
patrimônio), maior será a alíquota adotada pelo Fisco, preservando os
contribuintes de menor capacidade financeira. Mais precisamente, a carga
tributária aumenta proporcionalmente à capacidade econômica.
Se
a capacidade contributiva e a progressividade são fundamentais, a busca por um
ordenamento mais justo e equilibrado não se esgota nesses princípios, devendo,
ainda, considerar outros princípios e conceitos, tais como transparência,
simplicidade, eficiência econômica e baixo custo de conformidade. Quanto a
esses pressupostos, há também certo consenso entre tributaristas e economistas.
Vimos
acima que, dentro do sistema, a capacidade contributiva e progressividade se
consubstanciam na aplicação desses princípios a tributos em que é possível identificar
as reais possibilidades financeiras do contribuinte e, assim, personalizar a
carga tributária, respeitando a equidade. Contudo, no caso dos tributos
indiretos, que incidem sobre o consumo de bens e serviços, essa tarefa se torna
bem mais complexa.
Historicamente,
um dos maiores entraves à promoção da justiça fiscal no Brasil reside no fato
de que sempre optamos por um sistema cuja ênfase de incidência encontra-se no
consumo, não na renda e no patrimônio. Ora, conforme salientado, a tributação
sobre o consumo iguala pobres e ricos, de forma injusta.
O
contribuinte mais pobre despenderá parcela maior de sua renda na sua
subsistência, esta dificultada por uma taxação maior sobre o consumo. Além
disso, não terá acesso a certos bens e serviços – cujo preço final estará
majorado justamente pela ênfase da tributação atribuída ao consumo – e que por
essa razão só poderão ser consumidos pelos mais ricos.
Infelizmente,
este modelo de tributação não foi alterado pela reforma tributária introduzida
pela Emenda Constitucional nº 132 de 2023 e regulamentada pela Lei Complementar
nº 214 de 2025.
A
ênfase da incidência foi mantida no consumo de bens e serviços, com a criação
de três tributos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência
federal, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência do Distrito
Federal, estados e municípios, esses dois tributos compondo o Imposto de Valor
Agregado Dual (IVA-Dual); e mais o Imposto Seletivo (IS), incidente sobre a
produção e consumo de bens e serviços considerados nocivos ao meio ambiente e à
saúde, e por essa razão chamado de Imposto do Pecado, que, na prática,
funcionará como uma alíquota adicional dos outros dois tributos.
Para
compensar o caráter inegavelmente regressivo do IVA-Dual (agravado pelo IS), tendo
em vista a sua incidência sobre o consumo, a reforma tributária estabeleceu um
mecanismo de reembolso para os consumidores de baixa renda, para o qual adotou
uma terminologia inglesa, o que nos parece inadequado.
O
cashback (ou simplesmente reembolso) está regulado nos arts. 112 e
seguintes da Lei Complementar nº 213/2025. A devolução de dinheiro inclui
produtos da cesta básica e gás de cozinha, bem como serviços de energia
elétrica residencial, fornecimento de água e tratamento de esgoto e
telecomunicações.
As condições para o reembolso são pertencer a uma família com renda per capita de até meio salário-mínimo, estar inscrito no Cadastro Único de Benefícios do governo (CadÚnico), ser residente no Brasil e estar com o CPF regularizado. O percentual de reembolso varia de 20% a 100%, sendo de 20% na maioria das vezes para os dois tributos (CBS e IBS).
O teto de renda per capita para se fazer jus ao reembolso nos parece demasiadamente baixo e insuficiente como medida compensatória da regressividade da tributação sobre o consumo. Mas este não é o único problema.
A
sistemática de reembolso é complexa, o que vai no sentido contrário da
simplificação, um dos pressupostos da justiça social elencados acima. Se tem
uma lógica complexa, a transparência também pode em algum grau restar
comprometida. Se a ênfase da tributação está mantida no consumo e na produção,
e não na renda, o setor produtivo tende a ser menos competitivo, comprometendo
a eficiência econômica e o desenvolvimento que tanto se esperava alcançar com a
reforma tributária.
A
par dessas questões, temos um alto risco de aumento do custo de conformidade,
ocasionando um crescimento do já elevado nível de litígio fiscal, tendo em
vista não apenas a complexidade do novo sistema, com intricadas regras de
repartição de receitas entre os entes federados, como as regras de transição
entre o antigo e o novo sistema trazido pela reforma tributária.
Todos
esses aspectos considerados nos autorizam a manter baixa expectativa quanto à possibilidade
de caminharmos, de fato, para um ambiente de plena justiça tributária no Brasil.
Lamentavelmente, depois de décadas de marchas e contramarchas, aprovamos uma
reforma tributária em tempo recorde no ano de 2024, mantendo a ênfase da exação
no consumo, e com isso um sistema complexo e regressivo, na contramão da
almejada justiça tributária.
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