Alternativa para a
indústria naval
(Este artigo foi publicado originalmente no site da revista Portos e Navios em 13/07/2018
https://www.portosenavios.com.br/noticias/artigos-de-opiniao/alternativa-para-a-industria-naval)
Nelson L. Carlini e
Nilson Mello*
Um Estado responsável não deve
deixar de estabelecer políticas setoriais estratégicas, visando a promover o
desenvolvimento econômico e, como resultado dele, a melhoria dos indicadores
sociais. O Estado tem uma missão a cumprir nas democracias liberais. Porém,
essas políticas jamais devem deixar de considerar parâmetros técnicos e regras
de mercado, indispensáveis para garantir a eficiência econômica que um
crescimento sustentável exige. Do contrário, eternizam a dependência do
empreendedor privado em relação ao Estado, gerando custos que serão pagos pela
sociedade, na forma de tributos.
O alerta é oportuno no momento em
que mais uma vez entra em discussão a retomada da indústria naval nacional, um
debate que há 60 anos é periodicamente ressuscitado, sempre que, após um
período de expansão, turbinado pelo dirigismo estatal, o setor volta a entrar
em declínio, fechando postos de trabalho e frustrando as melhores perspectivas.
Não há dúvidas de que a situação do
setor naval é dramática. Depois de chegar a empregar cerca de 80 mil
trabalhadores (estima-se que outros 320 mil, indiretamente), em cinco dezenas
de estaleiros, entre 2010 e 2014, hoje o setor emprega um contingente 60%
menor, com previsão demais demissões em 2018.
Dos estaleiros, restam cerca de 30
ativos, mas menos da metade deles permanece operacional, com contratos em
andamento, os demais já com operações paralisadas e praticamente desativados,
sendo que cinco em recuperação judicial. É lamentável que tantos postos de
trabalho sejam perdidos e tantas empresas fechem as portas. Mas, afinal, o que
aconteceu novamente de errado com o setor que recebeu tanto estímulo
governamental e viveu um verdadeiro novo boom
que duraria pelos menos 14 anos? A resposta está nos parágrafos anteriores:
artificialismo, com excesso de dependência do governo.
O setor não aproveitou o boom para se reestruturar em bases
sólidas, com padrões de eficiência que lhe garantissem a necessária perenidade.
Preferiu apostar na reserva de mercado que tinha como eixo a demanda de plataformas
e navios de apoio da Petrobras. Pela política governamental de então, a estatal
chegava a pagar por embarcações fabricadas nos estaleiros nacionais mais do que
o dobro do preço cobrado por estaleiros de Cingapura, Coreia do Sul e China. Na ocasião, a desculpa para o sobrepreço escancarado
era a "curva de aprendizado", ou seja, os defensores do programa
alegavam ser justificável pagar mais para desenvolver tecnologia própria e
qualificar trabalhadores. A eficiência e a competitividade viriam na sequência.
Nos anos 60, esses custos altos eram absorvidos pelos estaleiros, que os
compensavam com eficientes estratégias comerciais.
Somente de 2007 a 2014, os
financiamentos para os estaleiros nacionais somaram R$ 45 bilhões, via BNDES. A
crise da Petrobras, provocada por má gestão e pelos conhecidos episódios de
corrupção, aliada à queda do barril do petróleo, desmascarou a ineficiência.
Havia de fato demanda para 50 estaleiros ou eles foram turbinados pelo
artificialismo estatal? Na verdade, a volúpia de criação de novas instalações
atendeu apenas aos interesses dos empreiteiros envolvidos na construção de
estaleiros gigantescos. Qual foi a contrapartida exigida para tamanhas
benesses?
Os ciclos de estímulo aos estaleiros
iniciado com JK em 1957 já havia gerado Ishikawajima, Verolme, CCN-Mauá, Caneco
e Emaq. Esses estaleiros enfrentaram problemas no início dos anos 1990, mas
poderiam ter sido amparados e ampliados sem a necessidade de suntuosas obras e
novos canteiros espalhados por todo o país.
Houve estímulo e demanda
direcionados, mas este avantajado parque industrial - que chegou a entregar,
segundo entidades representantes do setor, 594 embarcações, entre plataformas,
navios de apoio e petroleiros de 2000 a 2014 -não se tornou apto a competir no
mercado internacional, não se tornou auto suficiente e independente de seu
maior demandante interno, a Petrobras.
A prova está no fato de a ANP ter
flexibilizado as regras de exigência de conteúdo local para a fabricação de
plataformas e navios de apoio, a fim de destravar os indispensáveis
investimentos na exploração da camada do Pré-Sal. As regras de conteúdo local,
como estavam postas, encareciam em mais de 50% os contratos de construção de
embarcações. Não por outra razão as obras da Petrobras foram deslocadas para
estaleiros de Cingapura, deixando os nacionais ociosos.
Neste momento, a indústria naval
luta, em diferentes esferas, pelo retorno da regra de 40% de conteúdo local,
além de garantias de financiamento. O argumento do setor é que, com esses estímulos,
poderá construir no Brasil 80 plataformas e 160 navios de apoio nos próximos 25
anos, suprindo a demanda para a plena exploração do Pré-Sal. Mas é justo
obrigar a Petrobras a pagar 50% a mais por embarcações fabricadas aqui? O
contribuinte, como sócio compulsório da estatal, concorda com este sobrepreço?
Isso propaga a eficiência de que o país precisa para se desenvolver ou gera
distorções em cadeia na economia?
A indústria naval já morreu uma vez,
na década de 1980, justamente porque não se preparou para competir em
parâmetros reais, quando o apoio estatal chegou ao fim. Seja qual for a decisão
agora, é importante que a sociedade esteja ciente de que uma estratégia de
crescimento só será de fato exitosa se considerar, de forma incondicional, a possibilidade
de o setor objeto da atenção governamental conquistar, em curto espaço de
tempo, a sua própria autonomia, incorporando, após o estímulo original, a eficiência, a produtividade e a
competitividade que lhe garantirão a almejada auto suficiência. A Embraer, que
nasceu estatal, adaptou-se ao mundo real, tornou-se uma empresa de sucesso
internacional e hoje de nada depende do governo.
Em outras palavras, a estratégia
oficial deve ter em conta a possibilidade de o setor andar com as próprias
pernas e não ser eternamente dependente de "muletas estatais".
Um modelo razoável seria ter em cada
projeto ao menos 40% de suas necessidades financeiras provenientes dos recursos
desses fundos, como o restante (60%) complementados pelo Fundo de Marinha
Mercante (FMM). As embarcações poderiam ser revendidas ao exterior após um
prazo mínimo de operação sob bandeira brasileira, com a quitação dos
financiamentos. Os estaleiros poderiam voltar a contar com financiamento à
produção pelo FMM, mas sempre cobertos por garantias reais e
cumprir uma cota crescente de exportação de produtos nacionais, a partir de 20%
da produção anual e avançando até alcançar um mínimo de 40%.
Para
amparar esse esforço de retomada, os
estaleiros deveriam criar grupos permanentes de desenvolvimento de projetos e
novas tecnologias com participação de universidades, em especial as de São
Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraná, que contam com centros
dedicados ao setor naval, bem como instituir associações que reunissem
estaleiros e armadores, convergindo interesses visando à discussão e ao
encaminhamento de projetos na indústria naval. Empresas e universidades,
juntas, poderiam estabelecer programas de desenvolvimento e monitoramento das
atividades, aumentando recursos para os projetos de sucesso e interrompendo (e
excluindo) aqueles em atraso ou sem aplicação.
Em suma, pela importância que representa para economia do país, pela capacidade de geração
de empregos e desenvolvimento de tecnologia, pelo valor agregado de seus
produtos e por seu potencial exportador, a indústria naval merece ser objeto de
políticas estratégicas, desde que essas políticas não perpetuem a sua
dependência do Estado, gerando ineficiências e custos que serão suportados por
outros segmentos e, no final das contas, pela sociedade de forma geral.
Neste momento, o setor clama pelo fim da
flexibilização das regras de conteúdo nacional na construção de navios e
plataformas. Um pleito de má qualidade, quando se sabe que as regras que foram
flexibilizadas encareceram os projetos da indústria naval, inviabilizando parte
dos investimentos da Petrobrás no Pré-Sal. Os estímulos e apoio ao setor podem
ser dados, mas devem ser responsáveis - como os exemplos citados acima -, e
jamais incondicionais, evitando, assim, gerar distorções e prejuízos para
outros segmentos igualmente estratégicos.
*Nelson L. Carlini é
engenheiro naval; Nilson Mello é advogado e jornalista
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