terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Ensaio

Maquiavel e a sua defesa da Liberdade


    Nascido em 1469, Maquiavel tinha 29 anos, em 1498, quando iniciou suas funções na vida pública em sua Florença natal, como oficial de Chancelaria da Cidade-Estado.  Quando os Médici reassumem o governo da cidade, com o apoio da Espanha, põem fim ao regime republicano liderado por Piero Soderini, governo ao qual Maquiavel servia como funcionário. Em 1512,  ele é, portanto, destituído de suas funções públicas, e chega a ser preso e torturado. Após ser libertado, em 1513,  inicia uma fértil atividade intelectual. Os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio são desta fase de sua vida, assim como O Príncipe, ambas obras-referência da Filosofia Política ocidental. O Livro I da obra, onde a questão da liberdade vem à tona, é o foco deste breve ensaio.
    Em Os Discursos (1513-1517),  Maquiavel tenta recuperar seu prestígio entre os governantes de Florença e mostrar-se útil como estrategista político e formulador da vida pública italiana. O livro em questão discorre sobre a melhor ou as melhores formas de organização institucional das cidades-estados da Itália, dominadas pelo Sacro Império Romano-Germânico (962-1806). É oportuno aqui fazer uma observação pertinente ao nosso estudo.  A partir de 1272 até as Guerras Napoleônicas, no início do Século XIX, o Império foi dominado pela dinastia dos Habsburgo, que teve sob o seu domínio, com variações ao longo do tempo, os territórios da Espanha, Países Baixos, Bélgica, Alemanha, Áustria, Eslovênia, Polônia, Hungria, Rep. Tcheca e até a França.
    As cidades italianas, portanto, estavam, em geral, na época de Maquiavel, submetidas, em  maior ou menor grau, ao Império Romano-Germânico, embora pudessem gozar de certa autonomia. Os mesmos Habsburgos que dominavam os Países Baixos de Van Den Enden dominavam a Itália Medieval de Maquiavel.
    Neste período, as discussões em torno da melhor organização institucional para as cidades mobilizavam o pensamento de juristas e filósofos na Europa, mas em especial na Itália devido à permanente lembrança da grandeza da República romana. Maquiavel era um apaixonado pelo tema, com profundo conhecimento da história. Aliás, é a história a sua principal ferramenta de trabalho na estruturação de sua doutrina política.
    Desde Petrarca (1304-1374), inicia-se na Itália um movimento de retorno aos clássicos do pensamento greco-romano, que alimentou não apenas o debate político e filosófico na Península como operou uma revolução nas artes e na literatura, criando as condições necessárias para a Renascença que emergiria  logo depois. Do ponto de vista político havia um desafio a ser superado pelos teóricos: a ação política era necessária, mas representava  uma forma de vida inferior e “degradada” em relação à vida religiosa,  como bem salienta Newton Bignoto, comentarista brasileiro de Maquiavel.[1] Autores clássicos como Cícero serviram para mostrar que era possível pensar a política de forma mais livre do que aquela que predominava na Idade Média, e assim foram resgatados por pensadores como Maquiavel.  O livre-arbítrio, cuja importância para o ser humano fora ressaltada por Santo Agostinho (e que durante boa parte da idade Média estivera associada ao pecado), transformou-se na ferramenta de elevação da humanidade a uma condição de vida superior,  mais digna.
    Em seus Discursos, Maquiavel não despreza esta perspectiva. Servindo-se de sua erudição e de seus conhecimentos de história passa a estruturar os temas centrais de sua filosofia política. Empreendeu assim sua própria concepção de vida pública e  estabeleceu, na obra, as condições gerais para a criação de um novo pensamento político, livre de diretrizes místicas, o que sobressai não apenas nos Discurssos, como em O  Príncipe. Uma nova gama de parâmetros para a vida pública, e para a política é inaugurada com suas teses.
    Maquiavel é cético em relação à natureza dos homens. Não seria um kantiano, mas, sim, claramente um hobbesiano, na medida em que adverte que os homens são maus e estão sempre prontos a agir contra as Leis. Numa passagem do 3º Capítulo de seus Discurssos, ele lembra que os que se ocupam de fazer as leis (ordenar o Estado), não devem ignorar este traço da natureza humana. Mas é preciso dizer que, nos Discursos,  ele manifesta a sua firme convicção na possibilidade de se ordenar uma República estável, coesa. O seu ceticismo, portanto, não o impede de ser propositivo. Muito ao contrário, é o diagnóstico que faz da natureza humana que o leva a elucubrar teses políticas e formas de governo decorrentes que venham a criar Estados mais prósperos e perenes.
    Para tanto, ele se ocupa em estudar as condições que presidem todas as ações políticas, livre de ingenuidades. Antes de tentar erigir um regime republicano, lança-se à investigação sobre de que forma este regime poderá se preservar. De nada adianta conceber o que não pode ter futuro.  Faz assim uma genealogia da estruturação do Estado,  em especial, na sua forma republicana. Passemos então, mais detidamente,  ao exame do Livro Primeiro dos Discursos, a partir da dissecação de seus capítulos.
    Pode-se dizer, com razoável margem de segurança, que a Busca da “verdade efetiva das coisas” é o primeiro pilar da Teoria Política de Maquiavel.  O segundo pilar seria a certeza de que o mundo tem um caráter mutável, e sendo assim os pontos de ancoragem para estruturar uma teoria política e ordenar um Estado também devem variar – ou seja, quem ordena, quem legisla, quem dirige uma  Nação deve considerar este caráter mutável que tem como analogia a própria natureza. Aqui temos expresso de forma conceitual o realismo do  pensamento de Maquiavel.
    Aliados a esses pilares, temos dois conceitos que perpassam toda a sua doutrina política. O primeiro é o conceito de fortuna (sorte), ou seja, o fato de que alguns eventos não podem ser previstos nem pelos melhores teóricos. O que, face ao caráter mutável que a própria  política deve adotar, requer adaptação. O governante e o ordenador (legislador) do Estado devem saber adaptar. 
    Passo a passo à fortuna, encontramos em Maquiavel o conceito de virtú, que, no vocabulário político do pensador, mais do que virtude no estrito sentido moral do termo significa também a capacidade de governar levando em conta a mutabilidade do mundo e, por decorrência, dos homens. A virtù seria, como salienta Newton Bignotto, a capacidade de bem agir - com discernimento e sem idealizações - na cena política, no momento certo. Mas, para o sucesso do empreendimento, este governante virtuoso precisará ainda da fortuna, porque,  como já vimos, nem tudo  é previsível.
    Maquiavel divide o Livro I  de seus Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio em dez Capítulos. São eles: I. Quais foram os princípios das cidades em geral e de Roma; II. De quantos espécies são as Repúblicas e de que espécie foi a República Romana; III. Que acontecimentos levaram à criação dos tribunos da plebe em Roma, o que a tornou a República mais perfeita; IV. A desunião entre plebe e Senado tornou livre e Poderosa a República Romana; V. Onde se deposita com mais segurança a guarda da liberdade: no povo ou nos grandes; e quem tem maior razão para criar tumultos; quem deseja conquistar ou quem quer manter; VI. Onde se procura saber se em Roma era possível ordenar um Estado que eliminasse as inimizades entre o povo e o Senado; VII. Das necessidades das acusações para conservar a liberdade numa República; VIII. Assim como as acusações são úteis às Repúblicas, são perniciosas as calúnias; IX. De como  é possível estar só para se ordenar uma República nova, ou para reformá-la inteiramente, com ordenações diferentes das antigas; X. Assim como são louváveis os fundadores de uma República ou de um Reino, são condenáveis os fundadores de um tirania.
    Quais teriam sido então os princípios das cidades em geral e de Roma? Contra toda a tradição medieval, Maquiavel entende que os conflitos são não apenas necessários como saudáveis para o fortalecimento das cidades (Estado). Os conflitos internos foram, segundo ele, a verdadeira causa da grandeza da República romana. A partir desta perspectiva, está claro que a República, ainda que seja o melhor regime ou forma de governo, é ela também vulnerável, como o prova a história de Roma.
    Mas esta análise acurada do mundo político que é feita por Maquiavel, em bases realistas, não nos impede de desejá-lo melhor. Ao contrário, em sua concepção, é diagnosticando os defeitos que se promove uma evolução, um aperfeiçoamento. A virtú permite ao governante/legislador operar esta ação rumo ao melhor - e aqui o nosso pensador assume, por assim dizer, uma abordagem kantiana da vida em sociedade. O ser humano está a caminho de um mundo político melhor, apesar dos reveses.
    Fazendo a genealogia das cidades, afirma Maquiavel que todas elas, sem exceção, ou foram edificadas por seus naturais (aqueles que nela nasceram) ou pelos estrangeiros. E os homens fundam as cidades para se proteger dos inimigos. Lembra o caso de Veneza, que, por  estar às margens do Adriático, não diretamente banhada pelo Mediterrâneo, sofreu menos assédio dos povos invasores que, partindo do Leste, fundaram suas colônias no Sul da Europa e no Norte da África. 
    Os forasteiros - explica ele - fundam as cidades (Estado) por ordem de seus príncipes, para expandir os seus domínios. Nessas, adverte, dificilmente os homens serão livres. Na escolha da cidade a se fundar, também estará ou não presente, como fator de sucesso, a virtù, que identificará o local onde há melhores condições de defesa e de prosperidade. Também a virtude dos ordenadores do Estado deverá conduzi-los a estatuir regras que venham a coibir o ócio. Mesmo os homens livres não devem se entregar ao ócio. Dá o exemplo do Egito antigo, muito fértil, e que se fortaleceu graças à disciplina das regras de trabalho.
    Voltando sempre ao exemplo de Roma, questiona quem a "edificou", Enéas ou Rômulo (e Remo)? Afirma que, se foi Enéas, foi um forasteiro; se foi Rômulo, um natural do lugar. Mas, não importando de como tenha sido, Maquiavel ressalta que Roma teve um princípio livre, independente de forças externas (não era uma província longínqua subordinada a uma outra soberania, ultramarina. Ensina que de qualquer forma, tendo sido fundada por Enéas ou por Rômulo, Roma contou com leis feitas por quem tinha discernimento (virtù), o que garantiu a sua sobrevida e o seu fortalecimento de forma livre.
    No Capítulo II, passa a investigar de quantos espécies são as Repúblicas e de que espécie foi a República Romana. A cidade feliz será aquela que encontra um ordenador (legislador/governante) prudente desde a origem; e foi este o caso de Roma. Um ordenador original prudente, um sábio na origem das leis fundadoras (uma ideia que mobiliza a Filosofia política e a Teoria Política desde a Antiguidade clássica, bem como é o objeto de investigação permanente da Teoria do Estado e da Filosofia do Direito). Afirma o pensador florentino, textualmente:
   “Assim, pode-se considerar-se feliz a República a qual caiba por sorte um homem tão prudente que lhe dê leis de tal modo ordenadas que seja possível viver em segurança sob tais leis, sem precisar corrigi-las”.[2]
    Aqui, na verdade, nos deparamos com uma contradição aparente entre os conceitos de conflito de mutabilidade. Faz a ressalva, porém, de que as Repúblicas que não têm um ordenamento perfeito, podem se reordenar positivamente, se tiverem em sua origem um princípio bom. Neste sentido, dá o exemplo da própria Florença, que se ordenou, reordenou e desordenou várias vezes em meio aos conflitos e embates políticos. Menciona, didaticamente, as três formas boas e as três formas más (degeneradas) de governo, estruturadas desde os clássicos e consolidada por Políbio: Principado/Optimates (Aristocracia)/ Popular, com suas respectivas formas degeneradas, que seriam Tirania/Oligarquia/Demagogia.
    No capítulo III, examina que acontecimentos levaram Roma a criar os Tribunos da Plebe. Ainda nos passos  do próprio Políbio, mas sem citá-lo, afirma  que a forma melhor é a mista, ou seja aquela que mescla um ou mais ingredientes das três. Teríamos assim um governante (príncipe, condottieri), um Senado com determinada gama de poderes legislativos e judiciais e uma Tribuna da Plebe (povo), que desta forma também poderia discutir os destinos da cidade (Estado) e contribuir para a formulação de leis ordenadoras.  
    Ao misturar as formas de governo, Maquaivel faz uma distribuição das atribuições de caráter Executivo, Legislativo e Judiciário, o que pode ser visto como um embrião da Teoria da separação dos poderes mais tarde consolidada com Montesquieu.  Procede também ao balance between powers, um instituto político-jurídico contemporâneo, que visa justamente a gerar coesão e harmonia entre as instituições de Estado.
    Menciona as transformações e os ciclos das formas, novamente incorporando  conceitos dos clássicos sem citá-los diretamente: a monarquia (ou principado) transformando-se em tirania; a oligarquia sucedendo a aristocracia; o popular (democracia) derivando para a era da licenciosidade (demagogia), de uma sociedade desregrada. Alerta que, se uma República passa por tais mutações muitas vezes, raramente permanecerá de pé. 
    O que dá estabilidade é ter um pouco de todos os  tipos ou formas de governo. Afirma:
   “Quem ordenar a cidade deve ter em mente, na ordenação, um pouco de cada um desses modos; porque, quando numa cidade tem principado (ou seja, um governante executivo); optimates (aristocracia/Senado/elite) e governo popular um toma conta do outro”.[3]
    Cita como exemplo Esparta de Licurgo, que ordenou as Leis desta forma. Lembra ainda que Roma não teve a primeira fortuna (sorte) em sua ordenação, que no início não era mista, mas que depois seguiu o "bom caminho" instituindo os Tribunos da Plebe, o que implica a adoção da forma mista. Percebe-se aqui a consciência de Maquiavel quanto ao que podemos chamar, numa linguagem contemporânea, de conflito de classes. E afirma:
   “Criaram assim os tribunos da plebe, tornando-se mais estável o estado daquela república, visto que as três formas de governo tinham a sua forma”. [4]
    Numa perspectiva de caráter mais sociológico que reafirma seu ceticismo  em relação à humanidade,  explica que os homens só fazem o bem por necessidade; e é a fome e o medo que fazem os homens industriosos e gregários, sociáveis se assim podemos dizer, não no sentido romântico do termo, mas no sentido realista. Onde as licenças (liberalidades) são muitas, logo se chega à desordem. Por outro lado, os nobres (elite) também precisam de freios, para não exercer o seu poder de forma absoluta ofendendo e prejudicando a plebe, o que gera convulsões.
   “Por isso, depois de muitas confusões, tumultos e perigos de perturbações, surgidos entre a plebe e a nobreza, chegou-se à criação dos tribunos, para segurança da plebe”. [5]
    Conclui que foi desta forma que os romanos impediram os conflitos entre os nobres e o povo.
    Passa a analisar com mais detalhes, no Capítulo IV, a desunião entre plebe e Senado (ou seja, povo de um lado e nobres/elite de outro) para concluir que foi exatamente este conflito que tornou livre e poderosa a República de Roma. Maquiavel parece aqui estruturar sua própria dialética, cuja síntese se dá pela preeminência de um Estado ordenado a partir da fusão das três formas boas de governo. Lembra que depois da morte dos Tarquínios[6], Roma tornou-se uma República tumultuada.
    Afirma, porém, que leis em favor da liberdade nascem justamente após os conflitos sociais, reafirmando neste ponto a sua dialética. Depois dos Tarquínios até os Gracos, raros foram os tumultos sérios em Roma, porque normas mais liberais e razoáveis foram ordenadas. Por esta razão, segundo Maquiavel, Roma teria vivido quase 300 anos de relativa paz. Portanto, não se pode dizer que tais tumultos são totalmente nocivos, uma vez que eles redundaram em leis melhores e no fortalecimento do Estado. Foram leis benéficas à liberdade pública as que decorreram do período dos Tarquínios.
   “E se os tumultos foram razão para a criação dos tribunos, merecem sumo louvores; porque, além de concederem a parte que cabia ao povo na administração, tais tribunais (da plebe) foram constituídos para guardar a liberdade romana”.[7]
    Onde se deposita com mais segurança a guarda da liberdade; no povo ou nos Grandes?; e quem tem maior razão para criar tumultos: quem deseja conquistar ou quem deseja conservar? Maquiavel procura responder a esses questionamentos no Capítulo V de seus Discursos. Começa de antemão afirmando que a coisa mais necessária  numa República é a guarda da liberdade. Explica que, entre os Venezianos, esta guarda foi posta nas mãos dos nobres; entre os romanos, nas da plebe.
    E a que conclusão chega Maquiavel, dentro de seu pragmatismo político?
   “Deve-se dar a guarda da liberdade aquele que tiver menor interesse em usurpá-la. E, se considerarmos os objetivos dos nobres e dos plebeus, veremos  naqueles (nobres) grande desejo de dominar e nestes somente o desejo de não ser dominado e, por conseguinte, maior vontade de viver livres visto que podem ter menos esperança de usurpar a liberdade que os grandes”. [8]
    Os populares, portanto, teriam mais zelo na guarda da liberdade. E tanto aquele que quer manter o poder quanto aquele que quer conquistá-lo pode ter fortes ambições, em grau equivalente; e ambos os desejos podem dar margem a enormes tumultos.
    Na sequência, no Capítulo VI, Maquiavel passa a prospectar se em Roma era possível ordenar um Estado que eliminasse as inimizades entre o povo e o Senado. Recorre ao exemplo de Esparta, que institui um rei e um pequeno Senado para governá-la. Compara-a a Veneza, que, por sua vez, não dividiu o governo, mas, sob uma mesma denominação, todos os que podem administrar chamam-se gentis-homens. Veneza, ensina Maquiavel, pôde nascer e se manter algum tempo sem tumulto por que todos que ali moravam participavam do governo, de tal modo que não poderia queixar-se.
    Esparta de Licurgo criou mais igualdade de bens e menos igualdade de cargos – os cargos eram mantidos fora do alcance da plebe; mas, por outro lado, os nobres nunca lhe deram (pelos maus tratos) razão para possuí-los. Assim, para evitar tumultos,  Roma precisaria ter feito como Esparta ou Veneza: ou, no primeiro caso, não abrir caminho para os forasteiros, ou, no  segundo, não empregar a plebe na guerra. Mas fizeram ambas as coisas, o que deu força à plebe, segundo o nosso pensador. Contudo, esta força, em que dados momentos gerou tumulto, permitiu também a Roma ser a potência e o Império que foi. Diz Maquiavel, com a sua peculiar eloquência:
“Se Roma quisesse eliminar as razões dos tumultos, eliminaria também as razões de ampliar-se”. [9]
    Em outras palavras, a imigração fortaleceu Roma. Esteve presente em sua gênese e em seu crescimento. Foi em grande medida a razão de seus conflitos, mas, ao mesmo tempo, o seu fator de grandeza. O que poderia ser um problema tornou-se uma solução política. Porque, ensina, grandes Impérios precisam de muitos cidadãos.
    Quem quiser portanto ordenar uma Republica, precisa saber o que pretende: mantê-la em seus domínios sem oferecer grande ameaça aos inimigos,  ou crescer, como fez Roma. Uma escolha pragmática. A escolha de ser pequeno às vezes se torna um risco muito grande e Maquiavel então conclui:
“... Creio ser necessário seguir a ordenação romana, e não a das outras repúblicas; porque não acredito seja possível encontrar um meio termo entre uma e outra, e as inimizades que surgissem entre o povo e o senado deveriam ser toleradas e consideradas necessárias para que se chegasse à grandeza romana”. [10]
    Se há conflitos políticos e sociais, os sociais engendrando os políticos, é  preciso haver igualmente um arcabouço institucional, de caráter jurídico, que seja capaz de solucionar esses confrontos abertos transformando-os em litígios regrados pelo Estado. Eis então que, no Capítulo VII de seus Discursos Maquiavel  faz uma exaltação daquilo que podemos entender como legalidade, ao defender a necessidade das acusações para se conservar a liberdade numa República. Seria, em linguagem jurídica estrita, uma ode ao devido processo legal e à publicidade dos atos judiciais, a fim de que toda a sociedade tome conhecimento dos julgamentos. Seria desta forma que efetivamente cumprir-se-ia o justo, fortalecendo as instituições republicanas.
    Maquiavel faz assim uma ode à  legalidade. Defende que haja acusações, mas que se dê o devido direito de defesa, sobretudo aos governantes e aqueles que dirigem o Estado. Preconiza que, com o direito de defesa legalmente assegurado, a verdade virá à tona, o justo será cumprido, o acusado, se inocente, absolvido, se culpado, condenado; e desta forma o  Estado será  fortalecido
    Em sentido inverso, mas pelas mesmas razões, deve-se combater com rigor as calúnias apurando os fatos e punindo os responsáveis pelas ofensas indevidas e falsas afirmações. Porque é também desta forma que o Estado sai fortalecido. Afirma Maquiavel: 
   “Por isso, nada há que torne mais estável e firme uma República  do que ordená-la  de tal modo que a alteração dos humores que a agitam encontrem via de desafogo ordenada pelas Leis".[11]
    Indiretamente Maquiavel também faz aqui a defesa das transparência dos fatos, esclarecimentos da vida pública – os cidadãos como testemunhas de sua própria história, julgado, pela opinião  pública, os eventos relevantes de sua cidade (Estado). Cita o exemplo de Coriolano, que, inimigo das forças populares, tentou castigar a plebe, privando-a, em momento de crise, de alimentos que viriam de fora durante um período de  penúria. Faz um alerta: não basta acusar um poderoso diante de poucos juízes; é preciso que sejam muitos os magistrados, porque os poucos sempre julgam favoravelmente aos poucos. Da mesma forma, adverte, se as Leis forem boas e bem aplicadas, não haverá necessidade de intervenção estrangeira, o que é nocivo para um Estado.
    Mas, assim como as acusações são úteis à República, as calúnias são perniciosas. No  Capítulo VIII, Maquiavel discorre sobre a inveja de Mânilo em relação a Fúrio Camilo, este tratado como herói por ter livrado Roma de inimigos externos. Mânlio calunia Camilo, mas acaba desmoralizado. E isso só foi possível porque os fatos foram apurados e julgados por quem tinha autoridade, para tanto; e isso, segundo Maquiavel, deveu-se a uma boa ordenação do Estado romano. Afirma, sobre o episódio:
“Os romanos mostraram neste caso como os caluniadores devem ser punidos. Porque é preciso que se tornem acusadores. E, quando se verifica que a acusação é verdadeira, devem ser premiados (os acusadores) ou ao menos não punidos: mas, quando não, devem ser punidos, como foi punido Mânlio”.[12]
    Já no  Capítulo XIX, questiona como é preciso estar só para ordenar uma República nova ou para reformá-la inteiramente com ordenações diferentes das antigas. Reafirma, aqui, a crença num legislador original sábio, dizendo textualmente o que se segue:
 “E deve-se ter como regra geral  que nunca, ou raramente, ocorre que alguma república ou reino seja, em seu princípio, bem ordenado ou reformado inteiramente com ordenações diferentes das antigas, se não é ordenado por uma só pessoa; aliás, é preciso que um homem só dite o modo, e que de sua mente dependa qualquer dessas ordenações”. [13]
    Argumento Maquiavel que, mesmo se este legislador sábio original vier a errar nos atos, eventualmente, mas se tiver tido um objetivo maior, o efeito dos fatos o escusará. Faz, portanto, nesta passagem a admissão implícita de que os fins justificam os meios, ideia que norteia, de forma subjacente, toda a sua doutrina política. Dá, neste sentido,  o  exemplo de Rômulo, que teria matado Remo, mas dali fez a grandeza de Roma.
    Didaticamente, sem perder de vista o seu realismo político e todo o seu pragmatismo, sentencia que este ordenador solitário deve ser prudente e virtuoso. De forma contundente, adverte que este legislador solitário original não deve jamais deixar a sua autoridade como herança. Para Maquiavel, a capacidade de governar não pode ser hereditária.
    Por outro lado, afirma que, quanto maior for o número de pessoas capacitadas a ordenar e administrar um Estado, maiores serão as chances deste Estado de se tornar próspero e perene. Tenderá a durar  mais  se for, depois de ordenada, entregue ao cuidado de muitos.  Sempre recorrendo à História de Roma para as suas conclusões e formulações, lembra que Rômulo, depois de ordenar Roma, reservou para si apenas o comando dos Exército, distribuindo as tarefas de governar. Identifica, nesta passagem, indiretamente, Rômulo como um fiador do Estado, aquele a quem cabe a tarefa de guardião.
    Por fim, no Capítulo X, diz que, se são louváveis os fundadores de um Reino ou de uma República, são vituperáveis os fundadores de uma tirania. Segue afirmando que, entre todos os homens louváveis, os mais louváveis foram os formuladores das religiões; e logo depois desses, os que fundaram as repúblicas e os reinos; depois desses, os que, comandando exércitos, ampliaram o domínio  da pátria; a esses se somam-se os homens das letras.
    Mas são ao contrário infames e detestáveis os homens que destroem religiões, dissipam reinos e repúblicas, inimigos das virtù , das letras, das artes e de qualquer outra atividade que confira  utilidade e honra à natureza humana. Os tiranos equivalem, segundo Maquiavel, aos ímpios, violentos, incapazes, ignorantes. In verbis:
 “E que ninguém se engane com a glória de César, sobretudo ao ouvir os escritores que tanto o celebram, porque aqueles que o louvam são corrompidos por sua fortuna [duplo sentido:sorte e riqueza] e deixam-se amedrontar pela duração do império que, levando o seu nome, não permitia que os escritores falassem  livremente dele”. [14]
    Lembra que dos 26 imperadores romanos alguns eram bons (cita Trajano,  Adriano, Marco Aurélio...), mas 16 foram assassinados. Nesta passagem, reitera novamente que impérios se arruínam pelos herdeiros e segue dizendo que: “nos tempos governados pelos bons, verá  um príncipe seguro  em meio aos seus cidadãos seguros, o mundo cheio de paz e justiça;  verá o Senado com a sua autoridade, os magistrados com as suas honras; verá os cidadãos ricos gozar de suas riquezas; a nobreza e a virtù exaltadas: verá a paz e o bem; por outro lado, verá a extinção do rancor,  da licença, da corrupção e da ambição: verá  o tempo de ouro, em que cada um pode ter e defender a opinião que quiser”.[15]
    Por fim, diz que um  príncipe (um governante)  não deve deixar passar a chance de ordenar uma cidade. Esta será a sua verdadeira glória em terra.
Comentários finais
    Liberdade e participação. Maquiavel preconiza a mudança da República por meio de sua reordenação, de sua transformação. Se para tanto for preciso derrubar o governante, e reconstruir do  zero,  que se faça. Mas Maquiavel faz uma abordagem equidistante da matéria no Livro I de seus Discursos, com caráter, poderíamos dizer, mais científico, ou pelo menos técnico. Está assim,  portanto, longe de ser o que a modernidade ou o Iluminismo chamaria de um "revolucionário". É, na verdade, um estrategista de Estado, o qual pretende ver aperfeiçoado por via do próprio  status quo, e não contrariamente ao status quo.
    O contexto explica a sua postura. Ao pensador florentino, profundo conhecedor da História, interessava retornar à burocracia, buscava recuperar participação na vida pública de Florença. Não faria assim sentido - ainda que isso fosse plausível para a época - destruir a ordem estabelecida.  Mas esse aspecto não invalida de forma alguma suas ideias, tampouco as gravam de ilegitimidade. O combate à tirania e a crença na liberdade dos povos emerge com vigor da leitura do Livro I dos Discursos.
Por Nilson Mello (Rio, Dezembro de 2016)


Bibliografia

[1] MAQUIAVEL, Niccoló. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio,  São Paulo, Martins Fontes, 2007, Apresentação.

[2] Obra cit., pág. 13
[3] Obra cit., pág. 17
[4] Obra cit., pág. 20
[5] Obra cit., pág. 21
[6] NOTA: Os três reis etruscos, de mesma linhagem, que governaram Roma entre 600 a.C. e 509 a.C
[7] Obra cit., pág. 22
[8] Obra cit.,pág. 24
[9] Obra cit. pág. 29
[10] Obra cit., pág. 32
[11] Obra cit., pág. 33
[12] Obra cit., pág. 40
[13] Obra cit., pág. 41
[14] Obra cit., pág. 45
[15] Obra cit., pág. 48

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