segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Artigo



Democracia e legitimidade


     A reeleição da presidente Dilma Rousseff neste domingo, com 51,6% dos 105,5 milhões de votos válidos, entre 143 milhões de eleitores que estavam aptos a ir às urnas, foi legítima e incontestável não importando a pequena margem de diferença para o seu adversário ou o fato de sua vitória ter sido decorrência de uma votação mais expressiva nas regiões menos desenvolvidas do país.
     Nas verdadeiras democracias – e o Brasil é uma delas, sem dúvida, após a sétima eleição geral consecutiva livre e direta - os votos têm exatamente o mesmo peso, independentemente da qualidade do votante. Não há, portanto, voto diferenciado.
Da mesma forma, a legitimidade do vencedor em pleitos majoritários não é conferida em dosagem, ou seja, não oscila em decorrência da maior ou menor diferença de votos entre o primeiro e o segundo colocados. Do ponto de vista prático, a maioria mais um tem o mesmo efeito de uma maioria ampla.
Contudo, o desenho da votação em cada região do país associado ao perfil dos eleitores nos permite algumas análises.
A presidente Dilma Rousseff construiu a sua vitória graças às Regiões Norte e Nordeste, onde obteve 56% e 72% dos votos válidos, respectivamente. O opositor Aécio Neves venceu no Sul, Centroeste e Sudeste, onde alcançou, respectivamente, 60%, 58% e 57% dos votos válidos. Na Região Sudeste, uma ressalva: embora tenha vencido no geral, ganhando em São Paulo com boa margem, e no Espírito Santo, o candidato da oposição perdeu em Minas Gerais, seu reduto eleitoral, e no Rio de Janeiro.
A que conclusão chegamos? Se a pergunta fosse direcionada a um militante, simpatizante ou eleitor de Dilma, ele certamente responderia que o Norte e o Nordeste, mais pobres, somados aos extratos menos favorecidos das regiões mais prósperas (Sudeste, em especial), elegeram a candidata do PT porque acreditam que ela fez mais pela sua melhoria de vida – e ainda poderá fazer mais.
De um jornalista militante do PT, ainda antes da votação de ontem, durante o balanço do primeiro turno e no bojo das pesquisas de intenção de voto para a rodada final, ouvi textualmente o seguinte sobre a vantagem da petista nos estados nordestinos: “São Paulo regride, enquanto o Nordeste progride”.
Na contramão da crença ideológica, que turva a lente com que se enxerga o mundo, distorcendo a realidade, encontramos outra explicação mais plausível. A candidata à reeleição conseguiu uma vitória mais expressiva nos estados menos desenvolvidos e nos grotões mais pobres justamente porque, nessas regiões, o nível de escolaridade é mais baixo e, por consequência, menor é a capacidade do eleitor para avaliar erros e acertos.
Se levarmos em conta os enormes problemas que o país enfrenta na economia – um conjunto de indicadores amplamente desfavoráveis, a começar pela inflação e pela ausência de crescimento - e ainda os inúmeros casos de corrupção envolvendo integrantes de governos do PT, com deletérias ramificações nas estatais, a relação entre desinformação e voto em Dilma salta aos olhos – para aqueles que querem ver, evidentemente.
 Acrescente-se a isso o fato de as camadas menos favorecidas da população – e, portanto, menos informadas - estarem mais sujeitas à manipulação e a práticas espúrias como o assistencialismo. Uma menor parcela – como o jornalista citado acima – vota em Dilma por orientação ideológica, e a despeito de todas as incongruências programáticas. Mas esses, claro, são uma minoria. 
Mais uma vez, seria preciso ser completamente desinformado para acreditar – ou ter má-fé para repetir - que os 51,03 milhões de brasileiros (48,4% dos votos válidos) que apostaram em Aécio Neves neste segundo turno são privilegiados e insensíveis que não se preocupam com o bem-estar dos mais humildes, ou com o destino do país. Vale dizer que metade dos eleitores do tucano ganha até três salários mínimos apenas, o que desmonta (mais uma vez, para quem quiser ver apenas) o marketing falacioso.
A propaganda do governo martelou que o voto contra Dilma seria o voto contra os pobres. Numa democracia ainda tão desigual como a brasileira, é a pobreza a mola propulsora do círculo vicioso da política – é dela que se alimentam os maus dirigentes.
Haverá esperança real de mudança quando os nossos governantes passarem a garantir para a educação uma prioridade estratégica, com parâmetros rigorosos de ensino (não foi o que fez o PT em 12 anos). O esclarecimento é o antídoto que depura a democracia, livrando-a de suas impurezas, entre elas o populismo e a demagogia. Não podemos discriminar o voto, atribuindo critérios de legitimidade em função dele. Não seria justo.
Mas podemos qualificar o votante. O processo é demorado, exigirá esforço e paciência, sobretudo dos mais esclarecidos. Enquanto isso, só nos resta reconhecer a legitimidade dos eleitos, preservando as regras do jogo.

 Por Nilson Mello
 
Em tempo:
1. Para um país que quer mudanças, 21,09% é um índice alto de abstenções, sobretudo se somados a votos brancos (3,84%) e nulos (1,71%).
2.A oposição venceu nas regiões mais desenvolvidas. Nos estertores do regime militar, meados dos anos 1970, o governo federal só vencia as eleições nos rincões distantes dos grandes centros urbanos. O discurso oficial de então era parecido com o do PT de hoje: no interior, o povo dá valor às ações do governo.
2.1 Com a costumeira lucidez, Demetrio Magnoli lembra que, em países marcados por grandes desigualdades, os mais pobres, no interior, quase sempre votam no governo.
3. O PT muito se queixa da grande imprensa. A grande imprensa – Veja, TV Globo, Estado de S. Paulo, O Globo etc – de fato crítica os governos do PT - este agora reeleito em particular - e denuncia as práticas políticas que o partido adotou no Poder. E com razão.
4. A propósito, para se defender das denúncias de corrupção, o governo primeiro disse que as acusações eram invenção da imprensa (elitista e reacionária), depois, durante a campanha, mudou o discurso, afirmando que há muitas denúncias porque o governo Dilma manda investigar os desvios. Ou é uma coisa ou outra. O curioso é que a maioria dos desvios que o governo “manda” investigar é praticada por integrantes do próprio... PT ou de pessoas com interconexões com o parido.
5. De outro militante petista, ouvi o seguinte: “A presidente Dilma é ótima oradora”.
6. O PSDB do Rio de Janeiro, sem candidato próprio ao governo, elegeu apenas um deputado federal. O esvaziamento contribuiu para a derrota de Aécio Neves no Estado.
7. O economista José Roberto Mendonça de Barros, didaticamente, elenca os 15 fracassos do governo Dilma, em artigo publicado ontem no jornal O Estado de S. Paulo (ver link abaixo).  http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,15-fracassos-do-governo-dilma-na-area-economica-imp-,1582925

Comentário do leitor:

"Essas eleições deixaram bem claro que o país está dividido, não entre PT e PSDB, mas entre pessoas com instrução formal e pessoas sem ela. Num país assim dividido, a democracia estará sempre a reboque dos demagogos. Essa observação não desqualifica a vitória de Dilma. A realidade social do Brasil é essa e temos de aceitá-la. Se desqualificarmos a vitória de Dilma com base nos votos que recebeu dos sem instrução, estaríamos condenando esses eleitores a cidadãos de segunda classe.
No desenvolvimento da democracia na Europa, houve tempo em que o sufrágio era concedido apenas aos proprietários, e, mesmo proprietária, mulher não votava. Na Grã Bretanha, até a Primeira Guerra Mundial, a grande massa estava excluída das listas eleitorais. A maioria dos soldados que morreu nas trincheiras da França não tinha o voto. Mas morreram “for King and Country”. Acima do voto, havia algo maior que justificava o sacrifício. No Brasil, temos de nos ater a ideia democrática de que todo voto, quer venha dos instruídos, quer não, tem o mesmo valor. Nesse sentido, pode-se dizer que nossa democracia hoje é mais avançada do que a inglesa em 1914. De lá para cá a democracia inglesa evoluiu muito. A nossa terá de evoluir também. O caminho dessa evolução está traçado e as eleições presidenciais realçaram mais do que nunca o fato de que a educação tem de ser alçada à prioridade absoluta nos próximos 20 anos. Como fez o Japão em 1860. A sociedade japonesa, na época feudal, percebeu que não resistiria à investida do Ocidente, iniciada pelo Comandante Perry, se não se modernizasse. Modernização significava dominar as ciências. Em 10 anos, o Japão passou de um país com 90% de analfabetos para um de 90% de alfabetizado. Em 1905, derrotou a moderna frota russa com uma esquadra que incorporava o melhor da tecnologia ocidental. A história não carece de bons exemplos de desenvolvimento democrático via educação. Quando digo que temos de aceitar a imensa desigualdade social brasileira, não significa que devo me conformar com sua existência. Minha inconformidade com essa situação vem do fato de que quem a criou foram nossos dirigentes, ou melhor, nossas classes dirigentes, essas que apoiam o Aécio. Tendo sido obra do homem, pode ser desfeita por ele. Lanço um olhar para além das próximas eleições, que serão, como essas últimas, disputadas entre os instruídos e os sem instruções. Para além de limitar a ação dos demagogos, de eliminá-los, se possível, e assim abrir o caminho para eleições em que projetos para o pais são debatidos por uma população que recebeu boa educação formal, a redução drástica da desigualdade tornará o país mais eficiente, haverá menos desperdício e nossas cidades serão menos violentas, esteticamente mais aprazíveis e nosso conceito no mundo mais respeitado. (...) Falei em eleições futuras em que os eleitores se empolgarão na discussão de projetos para a nação, em vez da continuação ou não do “Bolsa Família”. Isso só pode acontecer com a desigualdade social reduzida a um mínimo. Enquanto essa era não se materializar, os debates permanecerão chulos e os programas dos candidatos paroquiais. O país continuará `a deriva, sem projeto nacional e o brasileiro continuará perplexo no que diz respeito a sua situação no mundo. O que somos nós? E para onde vamos? São ainda duas perguntas filosóficas - ou melhor, teóricas." - Mario Santos, diplomata.


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