sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Artigo

A ideologia e o impasse europeu

   Governos sem moedas próprias são governos desarmados, afirma o cientista político Valter Duarte Ferreira Filho, em texto de conferência proferida recentemente na UFRJ (*). Por essa razão, prossegue, o Fundo Monetário Internacional e a União Europeia propõem-se a “invadir” a Grécia, e também Portugal, Espanha e Irlanda, “com seus empréstimos em dólares e euros, cobrando medidas de austeridade e abertura para outros invasores externos: os comandantes do capitalismo internacional”.
    A discussão é mais do que pertinente tendo em vista o impasse desta quinta-feira (08/12), em Bruxelas, na reunião de cúpula dos países europeus, organizada para salvar não apenas o euro, mas a consolidação da unidade europeia.
    Para Ferreira Filho, enquanto os países ora em dificuldades continuarem a acreditar no sistema de mercado e no que ele chama de “representação despolitizada do dinheiro” - crença que, segundo ele, explicaria “tamanha imprudência política ao abrir mão da soberania monetária” – permanecerão sujeitos à “manipulação daqueles que podem e melhor sabem fazer uso do dinheiro, praticando o maquiavelismo monetário”.
    Ressalta o autor em seu texto, recorrendo a Alexander Del Mar: “O direito de cunhar moedas sempre foi e ainda permanece a mais inquestionável marca e manifestação da soberania”. Bingo. Passemos, então, aos esclarecimentos.
    Os que sabem fazer melhor uso do dinheiro são economistas, gestores, dirigentes de instituições multilaterais e líderes políticos, entre outros, que reconhecem a importância das regras de mercado, da qual a eficiência é um princípio inerente, no processo de desenvolvimento, ao invés de submeter às leis da ciência econômica (em especial, a da oferta e da procura) aos objetivos políticos, nem sempre límpidos e louváveis.
Valter Duarte Ferreira Filho deixou de considerar em sua análise, que tem 23 páginas e na qual citou ou fez alusão a 24 autores – um mix que vai de Stuart Mill a Marx; de Hobbes e Locke a Weber; de Keynes e Hayek – que uma economia é um sistema demasiadamente complexo para ser planejado por uma instituição central e deve evoluir espontaneamente, por meio do livre mercado.
E quem disse isso foi justamente Friedrich Hayek, Nobel de Economia que escreveu, entre outros, “A Desestatização do Dinheiro”, obra (curiosamente citada por Ferreira Filho) na qual revela sua preocupação com o uso político – ou seria “politiqueiro”? – da moeda e propõe que as emissões sejam feitas por organismos independentes dos governos.
Mas Ferreira Filho desconsiderou aspectos ainda mais importantes. O principal deles é que os países da União Europeia buscam ser, de fato, uma união plena, embora paulatina, e não apenas um conjunto de “soberanias” associadas, como ainda ocorre hoje. Isso está nas entrelinhas. Uma “soberania universal”, aliás, parece ser o caminho inexorável da própria humanidade, em futuro mais distante.
Outra omissão do autor: se os europeus pretendem manter-se unidos por meio de uma moeda forte, cujas vantagens são óbvias, precisam compartilhar, também, os seus pressupostos. Uma conduta fiscal responsável – redução de gastos e gestão eficiente dos recursos públicos – é o principal deles. Foi o que, entre outros fatores, tornou a Alemanha a maior economia da Europa e uma das quatro maiores do mundo, após sair devastada – econômica e moralmente – da Segunda Guerra.
Os países em crise, em especial Grécia, Espanha, Irlanda, Portugal, e agora também Itália, têm o direito soberano de não seguir o modelo. Mas, nesse caso, não terão mais como compartilhar um euro forte. A crise deixou claro que a união monetária depende de uma união fiscal, do reconhecimento a parâmetros fiscais mais claros e rígidos. A alternativa é a desestruturação da Zona do Euro e, consequentemente, o gradual enfraquecimento da União Europeia. É legitimo que Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda possam querer esse desfecho. Mas é mesmo esse desfecho que querem? Claro que não. Não estão na UE e no euro por imposição, mas porque é vantajoso.
A origem da crise, ao contrário do que o texto de Ferreira Filho pode nos induz a pensar, está justamente no descompromisso fiscal desses países cujas economias agora precisam ser resgatadas, sob o risco de a Europa mergulhar numa crise mais aguda e prolongada, com reflexos negativos em todo o mundo. Ocorre que, para colocar dinheiro na mão desses governos, que muitas vezes demonstraram desprezo pelas regras de mercado, gastando mais do que podiam, é preciso lhes impor certas condições. Ou o mundo deve assinar um cheque em branco à irresponsabilidade?
Eis uma das questões que Ferreira Filho não procurou responder. Talvez porque não tenha entendido que o mercado não é uma ficção ideológica, fruto de um gênio maniqueísta ou maquiavélico, como prefere. O mercado é apenas uma expressão genuína das relações econômicas, inerentes ao homem. Seu surgimento data do início da história da humanidade. E continuará a existir mesmo que a ideologia tente decretar o seu fim.
A crise europeia tem uma lição a nos dar. Mas é preciso franqueza intelectual para aprendê-la.

Por Nilson Mello

* Artigo “Dinheiro: a política e a guerra por outros meios ou Maquiavelismo Monetário”, publicado no Volume 4, Número 2 Outubro 2011/Março 2012 dos Cadernos da Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região, Volume 4, Número 2 Outubro 2011/Março 2012 - Fenomenologia e Direito.

2 comentários:

  1. Nilson,

    Gostei desta frase "Governos sem moedas próprias são governos desarmados"

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  2. O "mercado" é uma ficção ideológica sim, tal qual "economia" ou "sistema econômico". A ideia de tal realidade existir vem de um argumento político com fundamentos religiosos criado por Adam Smith. Quando meu trabalho "Economia: obstáculo epistemológico (estudo das raízes do imaginário liberal)" for publicado o senhor terá um vastíssimo argumento à disposição para fundamentar o que digo agora.

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