sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O Julgamento do RE 949.297 no Supremo

 

O vício de origem da Lei da CSLL,

a "coisa julgada" e os contribuintes

 


 Nilson Mello

            Entre os julgamentos relevantes previstos para este ano no Supremo Tribunal Federal (STF), dois na esfera tributária merecem destaque pela repercussão geral de seus efeitos na sociedade e, consequentemente, pelo forte impacto que poderão causar aos contribuintes - ou aos cofres públicos. São os Recursos Extraordinários (RE) 949.297 e 955.227, cujos julgamentos estão agendados para a sessão de 11 de maio, tendo como relatores, respectivamente, os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. O julgamento estava na pauta da sessão do dia 15 de dezembro, mas acabou sendo adiado.

Calcula-se que cada um desses processos afetará diretamente cerca de 1 milhão de contribuintes pessoas jurídicas, além de trazer um novo entendimento teórico para temas de enorme importância para o mundo jurídico. O que está em jogo nos dois processos são os limites da coisa julgada em matéria tributária, a partir do controle concentrado e abstrato feito pelo Supremo em que houve declaração de constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional.

            Em outras palavras, trata-se de saber se as decisões do STF fazem cessar os efeitos futuros da coisa julgada em matéria tributária, quando a sentença tiver se baseado na constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tributo. Ambos os casos se arrastam por décadas e colocam em colisão alguns dos mais importantes princípios norteadores do direito tributário e do direito administrativo, em especial o da isonomia e o do interesse público. Por essa razão, os dois processos se tornaram paradigmas (leading cases) da questão em foco, cabendo ao RE 949.297/CE o Tema 881 e ao RE 955.227/BA, o Tema 885, no Supremo.

            O presente artigo toma como foco o RE 949.297/CE, por ter sido este objeto de debate no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), ocasião em que fui designado para elaborar parecer a respeito, com pedido vinculado para que a instituição ingresse como amicus curiae (amigo da Corte) na causa – pedido este ainda não examinado. Cabe lembrar, preliminarmente, a relevância da coisa julgada, também verdadeiro princípio de nosso arcabouço jurídico, expressamente protegido pelo art. 5º, inciso XXXVI.  Na coisa julgada alicerça-se a eficácia das decisões judiciais e, portanto, a própria segurança jurídica, indispensável à preservação do Estado Democrático de Direito.

            Igualmente oportuno é salientar a diferença entre o controle de constitucionalidade concentrado e abstrato e o controle difuso. O controle concentrado exercido pelo Supremo e proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental produz os seus efeitos para toda a sociedade. Esse controle é feito em relação a uma causa específica (como a atinente ao RE 949.297/CE), mas tem um caráter abstrato no sentido de que a tese assentada ali repercute de forma geral e a todos vincula. No controle difuso, ao contrário, a decisão produzirá efeitos apenas entre as partes envolvidas, embora possa servir de referência jurisprudencial em outros julgamentos.

Para avançarmos na discussão teórica, é preciso proceder a um breve histórico do RE 949.297/CE e de seus precedentes. Em 2007, o Supremo julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 15-2 (ADI 15-2), que questionava a constitucionalidade da Lei 7.689/1988, instituidora da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL). Declarou a ADI improcedente por considerar que não haveria necessidade de Lei Complementar para instituir o referido tributo. Como vemos, a questão fática de fundo do Tema 881 refere-se à constitucionalidade da CSLL. A contribuição tem claro vício de origem, uma vez que foi instituída por norma ordinária (Lei 7.689/1988), e não por Lei Complementar, como determina a Constituição (art. 146 caput e inciso III).

No caso em tela, num espaço de pouco mais de duas décadas, o Supremo alterou significativamente o seu entendimento sobre a constitucionalidade da CSLL. Em sede de controle difuso, em 1992, vinculando diretamente apenas dois contribuintes, entendeu que o tributo era inconstitucional, mas não por vício de origem e, sim, porque ofendia o princípio da irretroatividade tributária. Mais tarde, em 2007, em controle concentrado de constitucionalidade, a Corte alterou sua jurisprudência e declarou, implicitamente, a constitucionalidade da CSLL, surpreendendo os contribuintes que acompanhavam a jurisprudência do tribunal. A questão do flagrante vício de origem da lei que institui o tributo não foi devidamente enfrentada nas duas ocasiões.

            Agora, portanto, o objetivo do Tema 881 é saber se a decisão com trânsito em julgado declarando a inexistência de relação jurídico-tributária, sob o fundamento de inconstitucionalidade incidental do tributo, perde a sua eficácia em razão de superveniente declaração de constitucionalidade de sua norma introdutora, na via de controle incidental pelo Supremo. Secundariamente, cabe saber também qual será a modulação de seus efeitos: serão retroativos (ex tunc) e prospectivos (ex nunc), ou apenas retroativos? Mais: seria preciso Ação Revisional da sentença com trânsito em julgado para fazer valer cobrança pela Fazenda Nacional a partir do novo entendimento definido pelo Supremo em controle de constitucionalidade ou a aplicação seria automática? Eis as questões teóricas que dão ainda mais relevo ao julgamento de 11 de maio.

Por óbvio, figura como reclamante no RE 949.297 a União, por meio da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. O reclamado é a empresa TBM – Têxtil Bezerra de Menezes, de Fortaleza. O Acórdão do Tribunal Regional da 5ª Região manteve a sentença em ação mandamental ajuizada em 1989 pela TBM, com trânsito em julgado em agosto de 1992, declarando a inconstitucionalidade da Lei 7.688/89. Dessa forma, eximiu a autora do recolhimento do referido tributo.

A exemplo da TBM, muitos contribuintes obtiveram decisões que já transitaram em julgado reconhecendo a inconstitucionalidade da lei que instituiu a CSLL, por vício formal, e, neste sentido, passaram a não mais recolher o tributo. O argumento da Fazenda Nacional é de que o tratamento dado pelo Judiciário a esses contribuintes fere o princípio da isonomia, expresso na Constituição, e também ultrapassa o limite da coisa julgada afastando, por sua vez, a possibilidade de reconhecimento da “supremacia do interesse público”.

Em março de 2016, o Supremo reconheceu a repercussão geral da controvérsia relacionada aos limites da coisa julgada em matéria tributária, nos casos em que o próprio tribunal declara, em controle concentrado, a constitucionalidade de tributo que havia sido considerado inconstitucional em controle incidental e com decisão transitada em julgado.

Como resultado, o Fisco Nacional passou a exigir a CSLL das empresas que até aquele momento estavam isentas por força de decisão judicial transitada em julgado, assumindo o entendimento de que houve a alteração da Lei 7.688/1989 e que seria aplicável a Súmula 239 do Supremo, segundo a qual “decisão que declara indevida a cobrança de imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação a [exercícios] posteriores”. Portanto, bilhões de recursos de milhares de empresas estão envolvidos na questão. Por outro lado, no Resp 1.118.893/2011, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a ausência da alteração da Lei e a inaplicabilidade da Súmula 239, quando se trata de declaração de inconstitucionalidade de norma instituidora de tributo, trazendo ainda mais controvérsia ao tema.

Para não perdemos de vista o referencial histórico-cronológico da questão, cumpre lembrar que, diante do imbróglio fiscal e na iminência de ser obrigada a pagar quantias vultosas, a TBM do Ceará impetrou mandado de segurança arguindo a inconstitucionalidade da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL), salientando que a criação do tributo requer a edição de Lei Complementar, cercada de maior rigor no processo de produção legislativa, nos termos do art. 146, inciso III, alínea “a” da Constituição. Em 14 de agosto de 1992, houve o trânsito em julgado da decisão que reconheceu a existência desse vício formal e determinou a inexigibilidade do tributo. A partir daí, a empresa contribuinte deixou de recolher a CSLL, assim como outras centenas de contribuintes em todo o país.

            Contudo, como em 14 de junho de 2007, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 15-2, o Supremo Tribunal Federal, em contradição ao que expressamente determina a Constituição, decidiu que não haveria obrigatoriedade de edição de Lei Complementar para a instituição da CSLL, a Receita Federal instaurou processo de fiscalização contra a TBM. A empresa, por sua vez, impetrou novo mandado de segurança (preventivo) para impedir a lavratura de Autos de Infração que objetivassem a cobrança da CSLL, com fundamento no trânsito em julgado da decisão que lhe era favorável (Acórdão do Tribunal da 5ª Região).

Deste segundo mandado de segurança originou-se a discussão no âmbito do RE 949.297. Após a prolação de decisão favorável ao Contribuinte pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a União interpôs o Recurso Extraordinário alegando afronta aos princípios da instrumentalidade, legalidade, proporcionalidade, isonomia e supremacia do interesse público sobre o particular.

Argumentou ainda que seria vedada a extensão dos efeitos da decisão que declarou a inconstitucionalidade da CSLL aos exercícios seguintes, sob pena de afronta à Súmula nº 239 do STF. Os Pareceres da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nº 432/2011 e da Procuradoria-Geral da República nº 138597/2016 corroboraram os argumentos União no sentido de que a decisão do Supremo, por meio de controle concentrado de constitucionalidade, alterou o ordenamento jurídico, modificando circunstâncias jurídicas da relação de trato sucessivo entre contribuinte-Fisco tendo em vista a cobrança do CSLL, o que originou, assim, uma nova relação jurídica.

Todo o contexto considerado, devemos ter em mente para o enfrentamento crítico da matéria alguns eixos de significativa repercussão no mundo jurídico que acabam por gerar mais controvérsias do que pacificação, mas que são incontornáveis no seu exame. O principal deles, do qual se desdobram todos os demais, é se o Supremo tem o poder de transformar lei flagrantemente inconstitucional, porque contrária a dispositivo constitucional expresso, em norma válida em face da própria Lei Maior. Nos referimos aqui, evidentemente, à exigência constitucional para a instituição de tributo, que requer a edição de Lei Complementar (art. 146, incisos II e III da Constituição de 1988).

Na prática, atuando consoante o espírito de “mutação constitucional” que tem caracterizado a sua atuação e motivado as suas decisões nos últimos anos, o Supremo ignorou a regra prevista na Carta de 1988 para validar, por meio da ADI 15-2, a Lei 7.689/1988, da CSLL. Portanto, a partir deste momento, sem que o processo legislativo regular venha a revogar a referida Lei, não há medida cabível da qual contribuintes ou sociedade possa lançar mão para invalidar a norma. A crítica quanto ao “judicialismo anômalo” da qual decorre uma clara invasão de competência de Poder é legitima, porém, torna-se um embate inglório no mundo prático da operação jurisdicional. Afinal, a Corte Constitucional reconheceu a validade da Lei: a Lei é constitucional, para todos os efeitos.

Emergem daí, como consequência, os outros princípios em clara colisão, tendo a questão fática de fundo como palco do embate. Se a norma é válida, porque o órgão de cúpula do Judiciário assim o decidiu, não há mais de se falar em inconstitucionalidade, e o princípio da legalidade passa a estar presente. Sendo assim, ninguém, ou nenhum contribuinte, pode se eximir de fazer aquilo que a lei determina. Aqui, em sentido inverso, aplica-se, o disposto art. 5º, inciso II. É norma, tem que ser cumprida, não se pode deixar de fazer.

Do que se desdobra a questão da isonomia, expressa pelo inciso I do mesmo artigo 5º. Se um contribuinte está adstrito ao cumprimento da exigência fiscal, todos os demais, em igual situação, ou seja, todos aqueles que realizam o mesmo fato gerador, de idêntica incidência, também devem cumprir, do contrário estar-se-ia dando guarida a um tratamento anti-isonômico, em ataque frontal ao dispositivo constitucional. A questão é de natureza constitucional. Não se trata aqui de discutir se a CSLL é um tributo de boa qualidade, que cumpre os melhores requisitos da técnica tributária. Por outro lado, não se pode mais discutir a constitucionalidade da lei que instituiu o referido tributo, pois os “guardiões da Constituição” já a consideraram válida – goste-se ou não da decisão.

Contudo, ainda que se reconhecendo a imutabilidade da constitucionalidade da Lei 7.689/1988 pela Corte (a não ser que a própria Corte venha a mudar o seu entendimento, ou que o Legislativo a revogue ou derrogue), nosso entendimento é no sentido de que não se poderia exigir o recolhimento do tributo de forma retrospectiva, por força da garantia à coisa julgada, expressa no inciso XXXVI, do art. 5º da Constituição da República: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Que o Fisco cobre do contribuinte o recolhimento do tributo a partir do reconhecimento da constitucionalidade da lei que o instituiu parece ser uma decisão mais em consonância com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, orientadores da administração pública. A Fazenda estaria atuando de forma contrária a esses mesmos princípios, em afronta ao inciso XXXVI do art. 5º da Constituição, se fizer exigência de forma retrospectiva (ex-tunc), alcançando os valores que deixaram de ser recolhidos antes do reconhecimento da constitucionalidade da lei.

 Entendemos, assim, que a decisão transitada em julgado que declarou a inexistência da relação jurídico-tributária, beneficiando o contribuinte, perdeu sua eficácia apenas parcialmente. Em respeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, principalmente, em respeito à “coisa julgada”, o contribuinte não deve ser cobrado pelo que deixou de recolher antes do reconhecimento da constitucionalidade da norma instituidora do tributo. Ainda assim, o impacto dessa solução para os contribuintes seria gigantesco, provocando, certamente, a falência de várias empresas, com inimagináveis prejuízos sociais.

Outra discussão teórica a ser enfrentada no julgamento do RE 949.297 em 11 de maio, considera que, uma vez que a coisa julgada individual se afigura imutável, a Ação Revisional (Código de Processo Civil, art. 505, inciso I) seria o único instrumento para interromper os seus efeitos. Neste caso, os contribuintes poderiam argumentar que, uma vez que a União teria perdido o prazo para tanto, a questão está definida, não havendo mais possibilidade de cobrança pelo Fisco, muito menos por meio de autuação administrativa.

Em contraposição a esse entendimento, o Fisco sustenta que desde 1992 os contribuintes não estavam mais autorizados a se valer das decisões contra a cobrança da CSLL, em face dos julgamentos pelo STF dos Res 146.733/SP, e 138.284/CE (decisões em controle difuso), declarando a constitucionalidade da Lei 7.689/1988. Além disso, alega que nenhum contribuinte pode se manter imune à cobrança da CSLL, porque isso representaria ofensas aos princípios da instrumentabilidade, proporcionalidade e supremacia do interesse público. Argui ainda ofensas aos arts. 3º, inciso V, e 5º caput e incisos II e XXXVI, que garantem o tratamento isonômico perante a Lei.

Neste sentido, os pareceres da Procuradoria Geral da República (nº 138597/2016) e da Procuradoria da Fazenda Nacional (nº 432/2011) salientam que a decisão do Supremo, por meio do controle concentrado de constitucionalidade, alterou o ordenamento jurídico, modificando circunstâncias jurídicas da relação no trato sucessivo Contribuinte-Fisco. A tese é de que uma nova relação jurídica se originou da alteração do ordenamento jurídico pelo controle concentrado, o que justificaria a cobrança inclusive de forma retroativa.

Se reconhecidos apenas os efeitos prospectivos (ex nunc), excluindo-se a possibilidade de retroatividade, será necessário ainda definir se esses efeitos incidiriam sobre fatos ocorridos após a decisão do Supremo na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15-2 até os dias de hoje, ou aqueles ocorridos (fatos geradores) após a decisão exarada no julgamento do próprio RE 949.297/CE, ou ainda em momento ulterior a ser definido na mesma decisão.

São essas, portanto, as grandes variáveis que exigirão dos julgadores do RE 949.297 o melhor de seus conhecimentos jurídicos, cientes da enorme repercussão que sua decisão colegiada terá para os contribuintes, a economia e a sociedade.

           

 

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