segunda-feira, 18 de julho de 2016

Comentário do dia

Turquia - O presidente Recep Tayyipe Erdogan e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento estão no Poder desde 2002. São de centro-direita, nacionalistas, com forte viés religioso (muçulmanos sunitas). Após ocupar o cargo de primeiro-ministro por uma década, Erdogan elegeu-se presidente e passou a ampliar os próprios poderes, assumindo funções de chefe de Estado e de chefe de governo.
    Para sufocar o golpe militar de sexta-feira passada, prendeu nada menos que 1.700 juízes "hostis". Golpe militar, aliás, é uma rotina na Turquia (como lembra Ishaan Tharoor, do Washington Post): 1960, 1971, 1980 e 1997. A atual Constituição do país foi escrita na penúltima virada, de 1980. É legítima uma Constituição escita na esteira de um golpe?

    A Turquia é, na verdade, um país de frágil coesão, dividido entre Ocidente e Oriente; muçulmanos e Cristãos, e retalhado por etnias. E por isso uma frágil democracia. Nas franjas da Europa (e com um pé na própria Europa), está geograficamente sob a ameaça do Estado Islâmico - é o seu próximo alvo. Em resumo, um barril de pólvora cuja explosão atingiria a Europa em cheio. 

     Não é por outra razão que Erdogan contou com o apoio do Ocidente e dos partidos de oposição para conter o golpe. A instabilidade institucional que poderia resultar de sua queda faz com que até adversários - no embate político-partidário - o defendam neste momento. Diante da ameaça do EI e de todas as incógnitas que decorreriam do desfacelamento da Turquia, preferem acreditar que seria pior sem ele, embora saibam que é ruim com ele. 

domingo, 17 de julho de 2016

Ensaio

A ética no pensamento de Spinoza




Breve biografia

    Nascido em Amsterdã em 1632, Baruch (ou Bento, ou Benedictus) Spinoza é considerado uma figura contraditória na Filosofia, mas cuja obra ainda produz ressonância no pensamento ocidental. De família judaica que havia fugido de Portugal por conta da perseguição aos judeus, recebeu orientação católica na infância e educação judaica na adolescência. Já adulto, suas ideias e escritos foram considerados ofensivos ao judaísmo e o colocou em conflito com os rabinos de sua cidade. Sofreu o xarem (excomunhão judaica) em 1656.
    Comerciante e fabricante de lentes e instrumentos óticos como lunetas, telescópios e microscópios, conquistou renome em toda a Europa. Paralelamente,  aprofundou seus estudos, integrou o círculo de Colegiados de Amsterdã - que se dedicavam ao exame do cartesianismo - e também construiu reputação como pensador, sempre sofrendo forte oposição por seu ateísmo.
    Racionalista, estudioso do hebraico e do latim, foi o precursor daquilo que ficaria conhecido como "Criticismo Bíblico", corrente do pensamento surgida durante o Iluminismo que procurava desmistificar os textos sagrados. Na verdade, zombava de todas as religiões. Criticava o que considerava crendices que turvam a verdadeira fé. Acreditava que a mente humana só poderia ser curada de seus erros pela "ciência da natureza".
    Spinoza define Deus "como a essência de todos os modos de existência que consiste de atributos infinitos, dos quais cada um é infinito em si mesmo". Devido à perseguição que sofrera, algumas de suas obras, como Ética, só vieram a ser publicadas após sua morte. Ainda em vida, publicou o Tratado Teológico-Político, sem indicação de autor, para evitar represálias, e ainda Tratado Político, Princípios da Filosofia de Descartes, Compêndio gramatical da língua hebraica, entre outros. Morreu aos 45 anos, de tuberculose.


A gênese da metafísica

     Não seria exagero dizer que, se Descartes procurou melhorar a Ciência, garantindo-lhe melhor fundação e parâmetros mais seguros, Spinoza, cuja tradição cartesiana é por todos conhecida, buscou aperfeiçoar o caráter dos seres humanos. A propósito, como bem salienta Don Garrett, Descartes é o único filósofo mencionado em Ética. Ao tentar melhorar o caráter dos indivíduos, Spinoza estava, sem dúvida alguma, pavimentando um caminho seguro para a auto-compreensão e, a partir dela, para a auto-preservação dos homens, na pretendida segurança de uma vida em sociedade. Podemos daí afirmar que os seus propósitos éticos - expressos notadamente em Ética, mas também em outras obras - revelam um caráter hobbesiano, como não deixam de reconhecer os seus comentaristas, entre os quais o próprio Garrett.
    A exemplo do que Hobbes fizera, Spinoza concebia os homens como parte da engrenagem da natureza, ou como mecanismos da natureza. Motivados pelo referido sentimento de auto-preservação, possível de ser alcançado graças ao emprego mútuo da razão, poderão "melhorar o seu modo de vida". Contudo, se o objetivo de Hobbes é mostrar que os seres humanos melhor equacionam os seus apetites por meio da implantação de restrições políticas e sociais mútuas (que venham a regular suas paixões), potencializando uma vida mais segura e agradável, o autor de Ética vai mais além e tenta mostrar que os seres humanos podem alcançar um estilo de vida que transcenda em ampla medida apetites transitórios e  tenha como consequências naturais o controle autônomo dessas paixões e a participação na beatitude eterna.
    Escrita sob a forma que Descartes denominava como  "método sintético" de demonstração, ou "ordem geométrica", nas próprias palavras de seu autor, Ética engloba Metafísica, Teologia e Epistemologia para dar sustentação a conclusões eminentemente éticas. Spinoza entende  (e isso  fica patente também pela Leitura do Tratado Teológico-Político bem como pelo Curto Tratado sobre Deus, Homem e seu Bem-Estar) que não é possível alcançar a virtude sem a superação, via desenvolvimento do intelecto, de três obstáculos que se apresentam como constantes na existência humana: a sobrevalorização da riqueza; a sobrevalorização da fama; e a sobrevalorização do prazer sensual (sexo). Esta discussão acerca de sua teoria ética ganha relevância nas Partes 3, 4 e 5 de Ética, mais especificamente da Parte 4, sobre  A Servidão Humana ou a Força dos Afetos.
    Se na Parte 3 ele vai discorrer sobre a O Origem e a Natureza dos Afetos, preparando o terreno para o que viria a seguir, e na Parte 5 tratará da Potência do Intelecto, retomando a questão da busca da liberdade por meio da razão, na Parte 4 Spinoza busca derivar sua teoria ética de um entendimento da Natureza em geral, assim como da natureza psicológica humana especificamente, associando uma coisa a outra, ou seja, a mente humana como parte integrante da natureza. É claro que esta teoria naturalista não é feita sem riscos ou equívocos, ou mesmo com alguns postulados questionáveis, como veremos mais adiante pelas críticas que lhe são opostas por Della Rocca. Contudo, é inegável o vigor com que estabelece esta relação de dependência, com base no único axioma que norteia a Parte 4 da obra:

"Não existe, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à qual não exista outra mais potente e mais forte.  Dada uma coisa qualquer, existe uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída".

    A servidão é, como Spinoza deixa bem claro logo de início, a impotência humana para regular e refrear os afetos, posto que o homem submetido aos afetos não está sob o seu próprio comando. Mais adiante, lembra que a natureza não age em função de um fim, pois o ente eterno e infinito que chamamos Deus (ou Natureza) age apenas pela própria necessidade pela qual existe. Ele não existe em função de qualquer fim, e exatamente por isso também  não poderia agir desta maneira. Como não tem qualquer fim em função do qual existir, por óbvio, pela teoria de Spinoza, também não teria qualquer princípio ou fim em função do qual agir.

    Adverte que a natureza não fracassa ou erra, pois isto é uma mera ficção. Quando nos referimos às perfeições ou imperfeições, em realidade, estamos nos referindo apenas ao modo de pensar, ou seja, nos referindo a noções que temos ao comparar os hábitos distintos de indivíduos do mesmo gênero ou da mesma espécie. Como salienta, uma mesma coisa (ou indivíduo) pode ser boa ou má ao mesmo tempo. Portanto, aquilo que Spinoza compreende por Bem (e que anuncia como tal em Ética) é aquilo que estabelecemos como meio para chegar a um modelo da natureza humana. Por consequência, o Mal será aquilo que nos impede de chegar a este modelo.

    Estando a virtude na essência do homem - e quanto a isso Spinoza não deixa a menor dúvida -, o fim que o homem estabelece para si e, por decorrência, para os demais que vivem com ele em sociedade será aquilo por cuja a causa fazemos alguma coisa, ou seja, o nosso "apetite". Virtude e potência têm, neste sentido, a mesma definição, ou se confundem na mesma coisa: a virtude, enquanto referida ao homem, é a sua própria natureza (essência), na medida em que ele tem o poder de realizar coisas que "podem ser compreendidas exclusivamente por meio das leis de sua natureza".

    Contudo, este homem virtuoso de Spinoza estará sempre submetido a paixões, que, por sua vez, também seguem a ordem natural da natureza, não havendo assim, motivo para que nos surpreendamos com o que é passional no indivíduo. O perigo real é quando a força de uma paixão ou de um afeto pode superar as outras ações do homem, e mesmo a sua potência de agir para que possa perseverar em sua existência - um afeto fixado de forma obstinada. Porque a força e a expansão de qualquer paixão, bem como a sua perseverança em existir são definidas pela sua potência, considerada em comparação com a nossa. Na busca do que é ético o homem não deve, portanto, se permitir que esta força supere a sua potência de existir - eis o desafio.
    Se tomamos consciência do que fazemos, percebemos que o conhecimento do bem e do mal  nada mais é do que a expressão ou representação do AFETO de alegria e tristeza. Emerge, assim, na teoria ética spinosiana o conhecimento como a chave para uma vida melhor. Adverte Spinoza na Proposição 14 da Parte 4 de Ética que o conhecimento verdadeiro do bem e do mal poderá refreá-lo apenas enquanto considerado como afeto. A verdade está na própria natureza do homem. O conhecimento pode refrear o afeto, se também for tomado enquanto tal, porque desta forma será expressão da natureza essencial do homem.
    Bem, aqui é preciso lançar o olhar para um ponto central na obra de Spinoza, que é a relação de substância/modo entre Deus e as coisas individuais. Esta relação está expressa pelo monismo:
   "Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido".

    No sentido cartesiano, os seres humanos não são propriamente distintos, porque a verdadeira distinção haveria somente em substâncias distintas, mas nós somos parte de uma mesma natureza, de uma mesma substância com a sua consequente extensão. Os seres humanos guardam, assim, uma íntima relação com outras coisas dentro da natureza.O que equivale a dizer que toda ação humana, a rigor, nada mais é do que uma manifestação da natureza, do que decorre que não há possibilidade de livre-arbítrio, ou seja, a liberdade entendida como ausência de determinação causal de vontade.  Se decorre da natureza está claro que implica uma "participação" efetiva, direta, de Deus. Também é importante frisar que em sua doutrina o necessitarismo (expresso em 1p29 de Ética) ganha relevância: "Nada existe, na natureza das coisas, que seja contingente, uma vez que tudo é determinado pela necessidade da natureza divina".

    Vejamos o que diz Garrett, in verbis, sobre a questão:

"Essa doutrina exclui a possibilidade daquilo que Spinoza chama de livre-arbítrio, ajuda a determinar o caráter e a estrutura do conhecimento e dá a perspectiva de consolação do infortúnio".

    Há modos de extensão e correspondentes modos de pensamento, e isso implica a identidade de mente com o corpo humano, bem como a identidade tanto de cognições quanto de "afetos" (emoções) em função de possíveis ocorrências temporais. O escopo de uma ética, expresso em Ética, seria o de uma doutrina voltada para propugnar a maneira correta de se viver. Para tanto, é preciso reconhecer a distinção entre os diferentes tipos de conhecimento, que seria a experiência (experientia vaga), a razão (ratio) e a intuição (scientia intuitiva), bem como proceder à distinção das categorias cognitivas. Da mesma forma que há uma identidade entre mente e corpo, há também identidade de cognições e de afetos. Emerge, sem dúvida, desta visão, um conflito entre mente e corpo, o qual uma doutrina ética poderá ajudar a pacificar.

    Peculiar fundamento da teoria ética de Spinoza, seu ponto de partida, é a teoria do esforço (conatus), expressa na Proposição 6 da Terceira Parte de Ética, segunda a qual, "cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser". E "o esforço para esta coisa preservar-se em seu ser nada mais é do que a sua essência atual", conforme propugna a Proposição 7 da Terceira Parte. O desejo é o esforço, porque envolve tanto a mente quanto o corpo, e ao mesmo tempo a consciência do próprio desejo.
    A tendência à auto-preservação torna-se assim, a priori, como lembra Garrett, um aspecto definidor da natureza de todas as coisas individuais, sendo, contudo, que coisas individuais da natureza (homens inclusos, por óbvio) não podem ser individuadas umas das outras a não ser por seus atributos da extensão, por aproximações finitas, posto que há apenas uma Substância. As diferenças advém, assim, das proporções de movimento e repouso decorrentes do esforço de suas essências em perseverar em si. Vale dizer que o atributo do pensamento também "gera" ideias atinentes ao movimento/ação de persistir em si.
    Intelecto difere de imaginação. As coisas singulares exprimem os atributos de Deus, a Sua potência.  Para Spinoza, os afetos são estados mentais intencionais. Ele reconhece três Afetos básicos, que são o Desejo, a Alegria e a Tristeza.  Os outros afetos existentes seriam versões específicas desses três primordiais. O amor seria, por exemplo, um tipo específico de alegria decorrente de uma ideia e uma causa externas, da mesma forma que o ódio poderia ser um tipo específico de tristeza, aqui também vinculada a uma causa externa. Em toda a Parte 3 de Ética são descritos muitos outros afetos, variantes dos três básicos. Vale dizer que os afetos são individuados estritamente por seu conteúdo cognitivo. Um afeto danoso, que deve ser combativo pela razão, implica crenças (e dessas atos) cujos efeitos podem ser destrutivos. Portanto, os princípios constitutivos dos afetos têm importantes consequências e injunções práticas e éticas.  O desejo (cupiditas) é, ao fim de tudo, o esforço (conatus), uma vez que envolve tanto a mente quanto o corpo, além da própria consciência do desejo. O corpo humano é conduzido pela mente.  A liberdade pressupõe a consciência da ação. Não podemos, lembra Spinoza, pela decisão da mente, fazer qualquer coisa sem que dela tenhamos uma lembrança prévia.
    As ideias inadequadas produzem as paixões, enquanto as adequadas produzem ações - estas destinadas ao esforço de perseverar em si. Na medida que uma coisa pode destruir outra coisa, elas são necessariamente de natureza contrária, não podendo, por conseguinte, estar no mesmo sujeito.  Como referido no início deste texto, a servidão humana - objeto da Parte 4 de Ética - nada mais é do que a impotência do indivíduo para regular os seus afetos e com isso evitar suas consequências danosas. Adverte Spinoza que não desejamos as coisas porque elas são boas, nem a evitamos porque elas são más, como o senso comum nos leva a acreditar. Pois, conforme ele adverte, os conceitos de "bom" e "mau" são aplicados às coisas de acordo com a maneira que elas nos afetam, se com apetite ou aversão, respectivamente.
    Por bem, ensina Spinoza, devemos compreender aquilo que sabemos, com certeza, que nos é útil; por mal, aquilo que sabemos, certamente, que nos impede de desfrutar de algum bem. Então uma coisa é útil para o ser humano se o ajuda a se aproximar de um modelo de natureza preconizado pela ética - no caso, a ética propugnada por Spinoza. A virtude, por sua vez,  tem uma identidade com a potência, nesta acepção de Spinoza. Porque a virtude, enquanto referida ao homem, é a sua própria essência ou natureza, à medida que ele tem o poder de realizar coisas que podem ser compreendidas exclusivamente por meio das leis de sua natureza. A virtude como própria essência do homem.
    Mas por que então exatamente os homens não observam os preceitos da razão, tornando-se impotentes e sujeitando-se à servidão? Para Spinoza isso ocorre porque os homens, como parte finita da natureza, teriam um estoque limitado de potência, estando, também, por esta razão sujeitos a forças externas igualmente ou até mais potentes do que a sua própria natureza. Aqui percebemos também a rejeição a ideia do live-arbítrio. Os homens, em suma, estão sujeitos a conflitos, porque nem sempre são capazes de seguir apenas os ditames da razão. São as paixões - oriundas de causas externas - que impedem os homens de avaliar onde está o seu verdadeiro bem a ser perseguido e o que lhe é verdadeiramente útil. As paixões são afetos as quais não têm origem e causa exclusivamente no homem, e que por esta razão podem desviá-lo de seu bem-estar.
    Dentre esses afetos danosos, estão os que geram tristeza e por isso diminuem a capacidade de ação do indivíduo. Ou mesmo podem ser afetos de alegria, mas distorcidos ou assimétricos, porque aumentam a capacidade de ação do indivíduo numa esfera específica, diminuindo a capacidade de discernimento do indivíduo para pensar e perceber coisas que são do real interesse de seu bem-estar. Alguns afetos são apetites que desviam a ação do indivíduo para a necessária auto-preservação. Mesmo quando sabe que algo lhe é útil, o homem está sujeito a se desviar do caminho por conta de paixões. E isso ocorre porque todo afeto é também ao mesmo tempo uma ideia ou representação do corpo do indivíduo, e como tal sujeitos também a corpos externos. Todo afeto, seja bom ou danoso, poderá ter como contrapartida afetos opostos, que garantam até a sua anulação ou restrição.
    A razão vai sempre nos indicar quais afetos estão em consonância com as próprias regras da racionalidade humana. E a razão jamais exigirá algo que seja contrário à natureza, levando cada um a amar a si próprio, buscando primordialmente o que lhe seja perfeitamente útil (útil ao seu bem-estar). É o que se depreende da Leitura da Demonstração da Proposição 18 da Parte 4 de Ética:

"O desejo é a própria essência do homem, isto é, o esforço pelo qual o homem se esforça  [grifo nosso] por perseverar em seu ser. Por isso, o desejo que surge da alegria é estimulado ou aumentado pelo próprio afeto da alegria. Em troca, o afeto que surge da tristeza, é diminuído ou refreado pelo próprio afeto da tristeza. (...) Como a razão não exige nada que seja contra a natureza, ela exige que cada qual ame a si próprio; que busque o que lhe seja útil, mas efetivamente útil; que deseje tudo aquilo que, efetivamente conduza o homem a uma maior perfeição; e, mais geralmente, que cada qual se esforce por conservar, tanto quanto está em si, o seu ser. Tudo isso é tão necessariamente verdadeiro quanto é verdadeiro que o todo é maior que qualquer uma de suas partes".

    Logo em seguida, na mesma Demonstração da Proposição 18, Spinoza expõe de forma derivada, porém, clara e contundentemente,  a sua teoria naturalista ao afirmar que o homem está em ligação direta com os outros homens, do que decorre que todas as coisas que existem na natureza estão também em ligação. Todas as coisas - todos os seres - são em verdade a extensão de uma só substância. O homem agindo de forma útil para si estará sendo útil também para os demais. Vejamos:

   "(...) os homens não podem aspirar nada que seja mais vantajoso para conservar o seu ser do que estarem, todos, em concordância em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de todos componham como que uma só mente e um só corpo, e que todos, em conjunto, se esforcem, tanto quanto possam, por conservar o seu ser, e que busquem, juntos, o que é de utilidade comum para todos".

    O raciocínio se desdobra, na sequência, para indicar que os homens que se permitem ser regidos pela razão - aqueles que buscam, "sob a condução da razão", aquilo que lhes é útil - nada apetecem para si que não desejem também para os outros e,  por isso homens justos e confiáveis para viver em segurança na sociedade, e em prol de um desenvolvimento comum da humanidade.
    Em busca da auto-preservação o homem deverá então prospectar e preservar a sua virtude. A sua potência - e, por consequência, a sua virtude - é simplesmente a capacidade de se esforçar em direção àquilo que é útil a ele e, por desdobramento, também aos demais. E quanto mais cada um busca o que é útil, esforçando neste sentido para conservar-se em seu ser, tanto mais ele será dotado de virtude, como num círculo virtuoso que regeria a sua existência. De modo contrário, tornar-se-á impotente na medida em que se descuidar de conservar o seu ser, como se depreende da Proposição 20  da Parte 4 de Ética. Deus é absolutamente infinito e conhecê-lo equivale a encontrar a virtude. Por outro lado, estar sujeito às paixões equivale a negar a sua própria potência.
    A razão e a sua busca tendo como fim a preservação em si que cada qual deve empreender e a qual poderá ser útil a todos fazem com que a comunidade de seres humanos possa compor um só corpo e uma só mente. É esta compreensão que pode nos levar a uma vida harmoniosa. E o homem é livre para alcançá-la, e esta liberdade decorre de sua natureza, que o determina a agir neste sentido. Num estado político, o homem poderá ser mais livre - até porque terá mais segurança para se auto-preservar - respeitando uma Lei comum, conforme expressa a Proposição 73 da Parte 4 de Ética, exemplificando o claro caráter hobbesiano referido de início.
    Vimos, portanto, que em Spinoza os princípios da natureza governam a mente. E, mais do que isso, que a natureza é uma só, sempre a mesma, ou seja, a mesma natureza está presente nas diferentes mentes como extensão. Assim sendo, as leis e regras da natureza são idênticas em todas as partes, não devendo haver mais do que uma maneira de compreender a natureza das coisas. As leis que governam os estados psicológicos dos homens também são leis ou regras de instâncias mais gerais que operam na natureza. Vemos que Spinoza assume um pampsiquismo ao induzir, a partir de sua teoria, sob influência cartesiana, que todas as coisas também esforçam-se em si para perseverar em seu ser.
    Conforme ressaltado de início, Della Rocca faz ressalvas a teoria naturalista estruturada por Spinoza, apontando bases que considera falsas ou o que chama de "equívocos inferenciais". Lembra que (seguindo a teoria naturalista), mesmo que cada coisa se esforce para persistir, disso não decorre que cada coisa deva esforçar-se para impedir uma diminuição em sua potência de agir e, de fato, aumentar a sua potência de agir. Então, afirma Della Rocca, as afirmações adicionais de Spinoza sobre o esforçar-se "não somente são falsas, como também não parecem decorrer da base (falsa) sobre a qual ele as faz".
    De acordo com Della Rocca, Spinoza sobrepôs uma proposição plausível com a afirmação falsa de que o estado de uma coisa em dado momento não basta para que ela fracasse em fazer aumentar a sua potência. Neste caso, o autor de Ética, segundo o seu crítico, teria sobreposto as potências causais das essências das coisas com as potências causais - estas mais abrangentes - das próprias coisas, incorrendo nos equívocos inferenciais.
    É certo que Spinoza entende que cada coisa em si mesma tem um esforço para se preservar a si própria em seu estado e para passar a um estado melhor. Mas, já que cada coisa esforça-se desta maneira, segue-se diretamente que ela também se esforça para impedir qualquer diminuição em sua potência de agir. Isso significaria que se ficar por si mesma, uma coisa não passará por uma diminuição de sua potência de agir. Contudo, pode-se identificar, seguindo a teoria do próprio Spinoza, um sentido em uma coisa esforçar-se para se autodestruir ou para eliminar completamente a sua potência de agir. E aí surge a incongruência. Completa Della Rocca:
    "(...) parece não haver razão alguma pela qual também não podemos ver sentido em ela [a coisa] não conseguir esforçar-se para impedir uma diminuição parcial em sua potência de agir ou em ela simplesmente não conseguir esforçar-se para aumentar a sua potência de agir (...). [além do mais] uma coisa pode perseverar em seu ser - isto é, continuar a existir -, mesmo que sua potência de agir não aumente e mesmo que sua potência de agir diminua (enquanto esta diminuição não chegar a zero)".
    Ora, já que a persistência é compatível com uma falta de aumento e também com uma diminuição na potência de agir do indivíduo, somos levados a acreditar, conclui Della Rocca, que o esforçar-se para persistir também é compatível com o não conseguir esforçar-se  para aumentar a potência de agir de alguém e também com o não conseguir impedir uma diminuição nesta mesma potência de agir. Mais além, dentro da mesma crítica: mesmo que cada coisa se esforce para persistir, disso não decorre que cada coisa deva esforçar-se para impedir uma diminuição em sua potência de agir e, de fato, aumentar a sua potência de agir. 
    Conclui Della Rocca, de forma categórica: "as afirmações adicionais de Spinoza sobre o esforçar-se não apenas são falsas, como também não parecem decorrer da base sobre a qual ele as faz". Além disso, ao contrário do que afirma Spinoza, é certo que existem seres humanos que não aumentam a sua potência de agir. Até porque há muitas coisas que aumentariam a potência de agir de um indivíduo, mas, como ele não tem ciência delas, ele simplesmente não age para que elas ocorram.
     Outra crítica a Spinoza diz respeito ao seu primado do imediato, que associa a adoção de determinada ação no presente não a um benefício futuro, mas sim à satisfação que isso implicaria, no presente, de imaginar um benefício futuro. Ou uma dor/tristeza que poderia ser evitada. Com isso ele quer dizer que os resultados mais distantes não podem, por si mesmos, ter impacto sobre nossos desejos.
    Spinoza entende que ao anteciparmos um sentimento (tristeza ou alegria) e reagirmos a ele, a nossa ação é determinada pelo presente, não pelo futuro. Isto porque ainda que este sentimento nos afete de forma mais tênue (por exemplo, uma previsão de dor, que é uma dor antecipada, é menos aguda do que a própria dor que se quer evitar), é, na verdade, em relação ao presente (o sentimento no momento da decisão, não o sentimento a se ter no futuro) que estamos tomando uma atitude e agindo. O primado do imediato: a antecipação da dor é, por si, dolorosa, o que leva o homem a uma ação preventiva. Mas, segundo alguns de seus críticos, o autor de Ética não pavimenta pistas seguras quanto a como afastar as dúvidas em relação a esta questão.
    Da mesma forma, Spinoza nos nega qualquer possibilidade de desejo altruísta, uma vez que o altruísmo ergue-se como uma ameaça ao seu naturalismo. Afirma Spinoza, em Proposição 25 de Ética: "ninguém se esforça por conservar o seu ser por causa de outra coisa". Por que pensa ele desta maneira? Porque entende que o esforço assim denominado altruísta, no fundo, existe  apenas para que possamos nos livrar de um sentimento que nos causa tristeza ou repulsa. Quando vemos, por exemplo, uma criança abandonada na rua e lhe damos abrigo ou quando providenciamos a remoção de um entulho de lixo que obstrui a nossa rua, queremos afastar um sentimento desagradável, que nos afeta negativamente (que gera tristeza). Assim, as ações estão, na teoria ética de Spinoza, centradas em nosso próprio benefício, e de forma imediata.

Comentários finais

    Se não há nada de contingente na natureza, o livre arbítrio nada mais é do que uma impossibilidade. Mas, se temos um determinismo, por conta de estarmos irremediavelmente atrelados à natureza, em Spinoza ele não chega a ganhar um caráter fatalista. Nossos atos dependem de uma providência Divina, isto é certo em Spinoza,  porém, é justamente isso que nos dá liberdade. Tudo o que em nós existe e se manifesta faz parte da natureza. Como o homem é levado, pela razão, a buscar aquilo que está a serviço de sua conservação, a alma tende a uma elevação, a um progresso, se assim podemos dizer.
    O corpo determina as paixões - verdadeiras armadilhas para a elevação - não por si mesmo, mas enquanto é objeto das percepções da alma. Daí decorre que nossa tendência a perseverarmos na nossa existência e a nos conservarmos sofra as influências das modificações (impactos de outras coisas) sofridas por nosso corpo. Por outro lado, o que a alma sempre procura é o que somente aquilo que pode reafirmar a sua potência de agir.
    O estado de liberdade dependerá de causas limitadas (não do livre arbítrio). É pela busca da virtude que o homem poderá progredir dentro do fim de perseverar em sua existência, de se conservar em si. Pois é desta forma que conseguirá livrar-se das más afecções, que são as paixões. Extrapolando para a teoria política, recorremos a Delbos para, em linha com Spinoza, dizer que o direito de cada um mede-se por sua potência, no estado social:

   "(...) Constituído pelo consentimento comum, o direito de cada um é definido pelo poder soberano, e a força pública [coerção], posta ao serviço do direito assim decretado, impede cada um de se fazer juiz segundo sua paixão e comportar-se consequentemente".

    Em suma, o homem que é conduzido pela razão é mais livre na cidade, como salienta Spinoza na Proposição 73 da Parte 3 de Ética, onde vive segundo as leis comuns, do que na solidão, onde obedece a si mesmo. A despeito das críticas que podem ser feitas ao sistema estruturado por Spinoza, como  inconsistências apontadas por Della Rocca, é preciso reconhecer a intuição original de Spinoza. Seus postulados persistem vigorosos na Filosofia, como o que diz que Deus é a causa imanente dos homens que fez.

Por Nilson Mello
    
BIBLIOGRAFIA
> DELBOS, Victor. O Espinosismo. São Paulo (SP), Discurso Editorial, 2002.
> GARRET, Don. Spinoza. Aparecida (SP), Editora Ideias e Tempo, 2011.
> MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de Filosofia. São Paulo (SP), 1966.
> SPINOZA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo (SP), Perspectiva, 2014.
> SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte (BH), Autêntica Editora, 2009.