sexta-feira, 24 de abril de 2015

Artigo

O financiamento de campanha



    Quando se fala em proibir doações de empresas em campanhas eleitorais, a ideia que vem associada, como justificativa, é a de probidade. Trata-se de coibir uma lógica que desvirtua o princípio democrático. Não estamos exagerando se dissermos que a fonte do financiamento tentará, em algum momento e em alguma medida, o retorno do investimento "eleitoral", a retribuição pelo apoio dado ao candidato ou ao partido.
    O financiamento privado distorce o processo, tornando-o menos democrático - se é que se pode graduar a democracia. É razoável dizer que o poder financeiro tem peso significativo nos resultados, o que, em tese, é injusto para quem não dispõe de recursos e não compartilha os mesmos interesses dos grupos financiadores. Esses, por óbvio, nem sempre serão coincidentes com os da maioria da população. Na verdade, raramente o serão, uma vez que os seus objetivos são, por definição, direcionados e específicos, enquanto os da coletividade tendem a ser difusos e genéricos, ou seja, melhores serviços de saúde, educação, transportes, segurança etc.
    Claro que isso não significa ser contrário à iniciativa privada ou às garantias de um ambiente regulatório e econômico propício ao seu desenvolvimento, reconhecendo o lucro como um importante - certamente o maior - estímulo aos investimentos e ao progresso. O ambiente legal-regulatório favorável será aquele com menos burocracia e com tributação menor e mais racional; o econômico, o da estabilidade de preços, da responsabilidade fiscal e, consequentemente, da credibilidade dos agentes públicos. Longo e duro caminho à frente.
    A reconquista, para ser perene e sustentável, deverá, em algum momento, implicar uma nova leva de reformas estruturantes - a tributária, incluindo a previdenciária e a trabalhista, a da administração pública, com a adoção de parâmetros voltados à eficiência e à produtividade etc. Por enquanto, não há capital político para tanto.
    Ser contra as doações privadas tampouco significa dizer que os resultados alcançados pelos grupos empresariais não terão repercussão no desenvolvimento geral, ao contrário, pois quanto maior for o número de empresas de sucesso, investindo e progredindo (e, para tanto, o reconhecimento do lucro é fundamental), maiores serão as taxas de crescimento econômico, a arrecadação, as ofertas de emprego e, como resultado desses fatores, a renda da população. Nunca é de mais repetir: quem gera riqueza são os indivíduos e as empresas, com o seu trabalho e gênio empreendedor, não o Estado.
    Voltemos às doações privadas. Em abril do ano passado, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo, pediu vistas à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o financiamento privado por empresas. A ação havia sido proposta em 2011 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Com sete votos já proferidos (6 a 1 contra o financiamento via empresas), não há mais como o resultado que decreta a inconstitucionalidade da regra ser revertido. Mas, com o seu pedido de vistas, Gilmar Mendes paralisou o julgamento, protelando a vedação.
    Recentemente, afirmou que a medida seria inócua porque a corrupção e a compra de favores entre grupos empresariais e candidatos continuarão a existir, ainda que em menor grau. Sofisma jurídico. O fato de negócios escusos entre empresas e partidos poderem continuar prosperando a despeito do fim das doações de empresas não significa que, com a regra vigendo, as coisas não possam ser ainda mais nebulosas.
    As empresas são as principais financiadoras das campanhas eleitorais brasileiras. Em 2014, partidos e candidatos receberam mais de R$ 5 bilhões de doações privadas, o que foi mais do que o dobro doado nas eleições de 2006. Uma parcela ínfima das doações vem de pessoas físicas. Com cifras desta magnitude, as eleições brasileiras já são umas das mais caras do mundo - ao lado das norte-americanas - o que por si só é uma incoerência se considerarmos os enormes desafios sociais do país (quantos hospitais e escolas esses R$ 5 bilhões não construiriam e reformariam?)
    Na verdade, estaríamos de certa forma proporcionando um significativo alívio aos grupos empresariais nacionais ao proibi-los de financiar partidos e candidatos. Porque, uma vez que a regra torna a contribuição quase compulsória para organizações de maior porte, às empresas não há alternativa a não ser contribuir. E exatamente por isso elas contribuem simultaneamente para a campanha de partidos e candidatos que são adversários nas urnas. Um pé lá, outro cá - mais um contra-senso do modelo. A prática tornou-se questão de sobrevivência no capitalismo de Estado brasileiro (patrimonialista), muito bem azeitado na última década.
    Agora, o outro lado da questão. Se as doações de empresas para partidos semeiam vícios que devemos prevenir, a partir de sua proibição, isso não significa que a instituição do financiamento público seja bem-vinda. É o que o PT e boa parte dos partidos pretendem agora, na tentativa de dar uma satisfação à sociedade pelos escândalos revelados na operação Lava Jato: substituir as doações privadas pelo financiamento público com rubrica específica no Orçamento da União. Mas, por que razão, se, na prática, o financiamento público já existe por meio do fundo partidário?
    Em 2014, os partidos receberam  R$ 320 milhões via esta fonte. Agora, acaba de ser sancionada pelo governo, em pleno período de ajuste fiscal, emenda ao Orçamento de 2015 que prevê aumento de 171% no fundo, para R$ 867 milhões. Uma afronta ao contribuinte num momento de arrocho. O valor é quase o montante (R$ 840 milhões) que os partidos indiretamente receberam pelo espaço "gratuito" (graças à isenção fiscal dada às emissoras) que ocuparam no rádio e na TV no ano passado.
    Convenhamos, para fazer propaganda, está de bom tamanho. Não precisam de mais uma fonte obrigatória, às custas do contribuinte. Este, se achar por bem, que doe diretamente de seu bolso - e, neste caso, que se estabeleça também um limite às doações individuais, para que o jogo seja minimamente justo. Até porque, quem quer realmente se manter informado sobre candidatos, partidos e governantes não precisa de propaganda. Esta só pega alienado ou o irremediavelmente convertido a uma ideologia.

Por Nilson Mello

Em tempo:
    Permitir o financiamento via empresas é dar ao poder financeiro um peso preponderante no processo, algo que subverte o próprio caráter plural de uma eleição democrática. Não faz sentido.  O ministro Gilmar Mendes, de forma surpreendente, preferiu ignorar esse aspecto (ou não ignorou) ao protelar o seu voto, frustrando uma decisão profilática que acabará se concretizando.
    Mais grave: o fato de adiar a sua decisão, ciente de que, cedo ou tarde, sairá derrotado, é uma postura antidemocrática, incompatível, portanto, com um ministro da Corte Constitucional. Na prática, ele simplesmente se recusa a validar, com o seu voto contrário (e legítimo), a decisão da maioria de seus pares. (NM)


sexta-feira, 17 de abril de 2015

Artigo

O que é melhor para o país?

Collor renunciou, mas foi processado pelo Senado

    As possibilidades de abertura de um processo de impeachment passam a ser maiores em função das novas revelações da Operação Lava Jato e também por conta do relatório do TCU divulgado esta semana apontando crime fiscal nas manobras realizadas pelo governo para esconder os rombos nas contas públicas. Mas não devemos estar felizes por isso, mesmo que contrários e críticos a este governo.
    A instabilidade institucional projeta cenários nebulosos, contraproducentes. Aumentam as incertezas políticas ao mesmo tempo em que diminuem, no sentido contrário, as chances de êxito dos ajustes que a equipe econômica começa a implementar na tentativa de corrigir os desarranjos promovidos no primeiro mandato.
    Como ter confiança no que está sendo decidido agora se não se sabe quem estará no comando amanhã?   Aliás, quem estará no comando amanhã, aquele ou aqueles que a Constituição, sucessivamente, determina como substituto ou substitutos, ou alguém que assumirá o Poder dentro de uma solução fora do "script"?
    Os 30 anos decorridos desde a redemocratização (reconheça-se, o mais longo período de estabilidade institucional da República) deveriam ser suficientes para nos tranquilizar quanto à manutenção das "regras do jogo". Contudo, devido ao nosso histórico nada recomendável (ver ensaio da último segunda-feira neste Blog), dúvidas, ainda que tênues, são justificáveis.
    Mas não é só isso: jamais podemos ter certeza se, na hipótese de afastamento, terá o substituo vontade política ou mesmo competência suficientes para dar continuidade à difícil tarefa já iniciada.
    Impeachments, renúncias e outras "intercorrências institucionais" são sintomas de imaturidade política. O impeachment, ainda que decidido no curso de um processo legal e legítimo, com previsão constitucional, revela um vício de origem que escancara a deficiência do modelo: a má qualidade do eleito, consequência direta da má qualidade do eleitor.
    Mas, para quem tem ido às ruas achando que o "recall" é saída simples, não deve ter entendido ainda que não há atalhos. E nem alternativa melhor à democracia. É preciso insistir permanentemente no aperfeiçoamento do modelo, sem sobressaltos ou retrocessos. O Impeachment é, digamos, um desses sobressaltos, ainda que com previsão legal. E o maior drama é que, neste momento, ele parece ser apenas questão de tempo. É prejudicial ao país quase tanto quanto seria a manutenção de um presidente comprovadamente responsável por ilegalidades. Eis a magnitude de nosso dilema!

A oposição
    Parcela significativa da oposição vive também um conflito não declarado em relação à questão, porém, mais por razões de sobrevivência do que de princípios. Sabe que os índices de reprovação do governo, do PT e, mais precisamente, da presidente da República - hoje em mais de 60%, segundo pesquisa do Datafolha - são garantia de apoio popular a um eventual pedido de abertura do processo - um pré-requisito talvez tão importante quanto os pressupostos legais e políticos.
    Sabe também que, se não estiver à frente da iniciativa, ignorando o ronco das ruas, que soou forte nas manifestações de 12 de abril e de 15 de março, corre o risco de perder credibilidade junto ao eleitor. Afinal, se a maior parte da população mostra-se insatisfeita com o desempenho do governo e o responsabiliza pela corrupção, o papel da oposição (qualquer que seja) é justamente canalizar o sentimento popular e transformá-lo em ação.   
    Para não cair no limbo, portanto, evitando o repúdio popular pela indiferença e omissão, legendas oposicionistas, PSDB à frente, decidiram esta semana encomendar um parecer jurídico sobre a questão. Quem coordenará o trabalho é Miguel Reale Júnior, renomado jurista, que, em recente artigo na grande imprensa, não escondeu a sua posição: considera haver provas incontestes de responsabilidade da presidente da República em atos ilegais praticados em seu governo, o que tornaria a abertura do processo de impeachment quase que uma obrigação moral do Congresso.
    Em seu texto, Reale Júnior ainda alude, como alternativa à presidente, a renúncia, a exemplo do que fez Collor para evitar o afastamento compulsório, como desfecho do julgamento de seu impeachment pelo Congresso.
    Mas a oposição está visivelmente encabulada. Compreende-se. Ao mesmo tempo em que não quer dar um tiro no pé - exigindo abertamente um processo que mais tarde poderia se frustrar sem a efetiva condenação -, está ciente de que, até por uma questão de sobrevivência, não pode ficar à margem do clamor público.

O contraponto

    Para que haja abertura de processo é preciso que a presidente da República tenha incorrido em crime de responsabilidade, conforme as hipóteses enumeradas no artigo 85 da Constituição Federal, entre elas atos contrários aos preceitos constitucionais, à probidade administrativa, à lei orçamentária e ao cumprimento das leis e das decisões judiciais. Ou que tenha cometido crime comum, cabendo, no caso, ao Procurador Geral da República entrar com pedido de abertura de processo junto ao Supremo.
    Que este é um governo mergulhado em escândalos de corrupção não restam dúvidas. Mas as provas concretas da participação direta da Presidente da República nos eventuais desvios e irregularidades, ou de sua responsabilidade como chefe de Estado e governo, ainda precisarão ser apresentadas. Compartilha esta opinião - em contraponto a Reale Júnior - Joaquim Falcão, outro jurista renomado.
    Uma vez apresentadas as provas, a acusação deverá ser admitida pela Câmara dos Deputadas, com pelo menos dois terços dos votos. Admitida, o julgamento será feito pelo Supremo, nos crimes comuns, e pelo Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
    Em suma, é um procedimento e um processo de caráter político. Portanto, o grau de sustentação do governo no Legislativo e junto à classe política é determinante para a abertura ou não do processo, assim como o nível de aprovação junto à população. O atual governo não tem nem uma coisa nem outra.

Por Nilson Mello
   


quinta-feira, 16 de abril de 2015

Comentário do dia

    Mais um constrangimento - A prisão do Tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, era esperada pelo Palácio do Planalto, segundo fontes internas, o que só torna ainda mais surpreendente a sua permanência prolongada no cargo, considerando-se que desde o mês passado era réu em ação penal aberta pela Justiça Federal no Paraná.
   Somente após ser preso Vaccari pediu afastamento do cargo. Agora, o governo e o partido se dizem constrangidos, mas por que então não exigiram a sua saída antes?
    O juiz Sergio Moro justificou a prisão do Tesoureiro do PT alegando que havia indícios de que ele persistiria "nas práticas criminosas, pela posição política e poder de influência que detinha".
    A Justiça identificou sinais de movimentação atípica e de possível enriquecimento ilícito entre familiares de Vaccari, em especial sua mulher, sua cunhada e sua filha, convocadas a depor.
   Mas Vaccari não é pioneiro. Antes dele, Delúbio Soares, outro tesoureiro do PT, já havia sido preso - e condenado - no processo do Mensalão.
    


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Ensaio

   Aonde queremos ir?


                   Getúlio vitorioso em 1930   
                
    A trajetória republicana brasileira é uma história que pode ser contada a partir da crônica de seus golpes (a começar pelo que lhe deu origem), levantes, deposições, renúncias e impeachments, sejam eles expressos ou brancos. É uma história conturbada, com alguns episódios violentos, apesar do folclore apontando o contrário.
    Nem precisamos retroceder tanto - como, por exemplo, à Revolução Federalista (1893), à Revolta da Armada (1893) ou às "guerras" de Canudos e do Contestado (1897 e 1912/16, respectivamente) - para firmamos esta percepção. Quase todos esses incidentes (ou acidentes) institucionais revelam falta de maturidade política.   
    O antagonismo político exacerbado, que ignora a regra democrática de respeito às diferenças e ao resultado das urnas, sobretudo, tem sido um ingrediente sempre presente na vida política brasileira.
    Tomemos como ponto de partida a década de 1920 e o movimento tenentista de orientação liberal - porém, reconheça-se, de caráter golpista - que seguiu produzindo consequências ao longo de todo o século XX, marcado por crises políticas e quebras da continuidade institucional.
    A partir dali, resumidamente, tem-se, com inspiração e métodos semelhantes, a Revolta de 22 ("18 do Forte"), a Revolução Paulista de 1924 e a Revolução de 1930, que marca o fim da Velha República, com suas cartas marcadas (a política "café-com-leite").
    Contra o arbítrio político, o domínio das elites financeiras e a fraude eleitoral o golpismo é legítimo e justificável? O tenentismo entendia que sim. Logo em seguida, em 1932, tem-se, em resposta, a Revolução Constitucionalista, liderada por São Paulo contra o governo de Getúlio.
    Entre os tenentes revoltosos da primeira metade do Século XX estavam, entre outros, Cordeiro de Farias, Eduardo Gomes, Siqueira Campos, João (Alberto Lins) de Barros, Juarez Távora, Miguel Costa, Luís Carlos Prestes. O movimento tinha o apoio - e a participação destacada - de civis como Getúlio Vargas e Oswaldo Aranha. Estavam entre eles também, vale lembrar, Geisel, Médici e Castelo Branco.    
    Com eles - ou, em grande parte, por causa deles -, à exceção de Prestes, àquela altura já aderente à causa comunista, Getúlio assumiu o poder em 193O. Serviu-se deles e virou-lhes as costas.
    A despeito de visões de mundo e de ideologias distintas - que no decorrer do tempo foram sobressaindo e elevando o grau de antagonismo entre oponentes - havia um desejo comum a unir todos esses nomes, de Prestes a Vargas, passando pelo udenista Eduardo Gomes e o próprio Ernesto Geisel (com sua concepção desenvolvimentista semelhante ao "capitalismo de Estado" ensaiado, veja só!, pelos governos Lula-Dilma).
    O ponto em comum, se é que se pode dizer assim, era a possibilidade de imprimir ao país um choque modernizante capaz de reformar não apenas as suas estruturas políticas, como também as sociais e econômicas. Em resumo, tratava-se de lançar um país eminente agrário e de práticas políticas arcaicas em outro patamar sócio-econômico.
    Sigamos a cronologia da instabilidade. Em 1935, com Vargas no poder, mas o país em situação política instável, quem tentou o golpe à sua maneira foi Prestes. (A "Intentona" ou o "Levante Comunista" que liderou acabou sendo um retumbante fracasso, com falhas do planejamento à execução que ajudaram a desfazer um mito).
    Dois anos mais tarde, quem dá o golpe é o próprio presidente da República, Vargas, instituindo a Ditadura do Estado Novo. Usa como justificativa para a exceção - se é que precisava de uma justificativa - a própria ameaça à estabilidade institucional.  Em 1938, por sinal, quem tenta um levante são os integralistas.
    A ditadura dura oito anos. Em 1945, com o fim da guerra contra o fascismo e os ventos liberalizantes soprando mais fortes no Brasil, Vargas é forçado a convocar eleições. Golpe contra o autoritarismo e a ditadura, ainda que pacífico, é legítimo? Foi o que ocorreu. Mas, redemocratizado, com eleições livres naquele ano, o país não se viu livre das escaramuças institucionais.
    O populismo demagógico e irresponsável, aninhado de um lado, e o conservadorismo obtuso e indiferente aos problemas sociais, entrincheirado do lado oposto, via de regra, dissimulados, respectivamente, em bandeiras da esquerda e da direita, seguiram minando as possibilidades de trajetória estável e de desenvolvimento econômico consistente nos anos seguintes.  
    Voltemos ao retrospecto. Houve novamente o que podemos chamar de intercorrências de constitucionalidade - com menor ou maior gravidade - em 1950, 1954, 1961, 1964 e 1992.
    Em 1950, o embate deu-se em torno da possibilidade ou não da candidatura Vargas (ex-ditador pode se candidatar, se eleger e tomar posse? Oposicionistas, Lacerda à frente, entendiam que não). Em 1954, uma crise política aguda (potencializada pelas oposições), com ingredientes econômicos e denúncias de corrupção, culminou com o suicídio do presidente e ex-ditador, seguido da dúvida quanto à possibilidade ou não de seu vice assumir o cargo. 
    Em 1961, com a renúncia de Jânio, mais um impasse: vice de partido e com programa de governo opostos ao do presidente que deixa o cargo pode assumir o poder? A regra constitucional dizia que sim, a cautela política entendeu que não, criando um parlamentarismo canhestro que durou pouco.
    A regra constitucional, prevendo a eleição de presidente e vice de partidos distintos era incoerente e inconsequente, mas era a regra. O golpe civil-militar de 1964 veio na esteira do ativismo político iniciado pelo movimento tenentista nos anos 1920. Estavam entre os seus líderes, lembre-se, Geisel, Médici, Castelo, tenentistas de outrora.
    Olhando em retrospectiva, 1964 foi  consequência e não causa. E foi civil-militar porque não teria tido êxito sem o apoio decisivo da sociedade - queira-se ou não. Assim como o Estado Novo, via-se como um "projeto modernizante" para o país, daí o termo "revolução" com o qual se auto-intitulou.
    Regimes de exceção não são eternos, embora nem sempre cheguem ao fim pela força. Restabelecida a democracia, após a Constituição de 1988 (precedida pela Campanha das Diretas-Já, de 1984, e pela eleição do oposicionista Tancredo Neves, via Colégio Eleitoral, em 1985), o voto livre, direto e universal levou à Presidência, em 1989, um presidente que acabaria afastado no bojo de um processo de impeachment. (Na verdade, renunciou antes do fim do precesso). 
    O "terceiro turno" das eleições, portanto, não é uma novidade no Brasil. Hoje, o PT acusa seus oponentes de lançar mão dele contra o governo Dilma, mas o partido foi o mentor do artifício.
    Afastar presidente, via processo político, é legítimo? No caso de Collor, parece não haver dúvidas que sim, embora ele jamais tenha sido condenado por corrupção na esfera judicial. Não custa lembrar que foi também a imaturidade política que alçou Collor à Presidência da República.
    O primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva foi fortemente abalado pelo episódio do Mensalão (o esquema montado pelo governo para cooptar parlamentares), em 2005/2006, sem que o seu afastamento tenha sido politicamente viabilizado. As provas eram tão presentes quanto no episódio de Collor, e é difícil dizer se a blindagem decorreu do apoio político dentro do Congresso, da alta popularidade ou de ambos.
    Em que condições então um impeachment é aconselhável? (e nem estamos falando aqui dos requisitos legais, apenas da conveniência político-institucional). Como saber quando a permanência de um presidente que perdeu a credibilidade gera mais instabilidade institucional do que o seu próprio afastamento?
    Porque a questão de fundo é saber se estamos contribuindo para o fortalecimento da democracia ou minando os seus fundamento. A nossa trajetória "republicana", como vimos, recomenda ponderação.
    Mais de 60% dos brasileiros hoje desaprovam o governo Dilma Rousseff. E mais de 63% apoiam um processo de impeachment contra a presidente, segundo pesquisa do Instituto Datafolha divulgada semana passada. As mais de 600 mil pessoas que foram às ruas neste domingo em 152 cidades brasileiras, de 25 estados mais o Distrito Federal, tinham, entre as suas principais bandeiras, o afastamento da presidente.
    Há menos de seis meses, Dilma Rousseff foi reeleita com mais de 54 milhões de votos (51,64% dos sufrágios válidos).  A julgar pelo mau governo que realizou no primeiro mandato - como demonstram, de forma incontestável, os indicadores econômicos e os escândalos de corrupção -, o resultado foi uma prova cabal de falta de maturidade política do eleitorado, que, desinformado, sucumbiu à propaganda.     O despertar veio tarde.  
    Mas é preciso saber aonde queremos ir. Se agirmos com maturidade política, só levaremos adiante a ideia de impeachment se surgirem provas claras do envolvimento da presidente nos escândalos de corrupção que marcaram o seu governo. Até o momento, essas provas não estão presentes.
    Se surgirem, devemos estar cientes de que, embora legal, com previsão constitucional, o processo é traumático e pode significar um novo retrocesso, sobretudo num momento em que o país tem nova condução na área econômica e começa a reconquistar a credibilidade perdida nos últimos quatros anos.
     Não se pode trocar governos a cada fracasso, por pior que sejam (como este foi). É preciso estabilidade de regras. Democracia é assim mesmo: dá trabalho e requer esforço reiterado, com depuração do eleito, via qualificação do eleitor.

Por Nilson Mello

Anote:

. A violência nas revoltas no Brasil - Na Revolta do Contestado, citada no início deste texto, houve sucessivas ocorrências de castração de prisioneiros, de ambos os lados, antes da execução, geralmente por degola ou fuzilamento.
. Os fundamentos do impeachment - Ex-ministro da Justiça, professor titular da Faculdade de Direito da USP e um dos mais respeitados constitucionalistas brasileiros, Miguel Reale Júnior lembra que o crime comum, ao contrário do crime de responsabilidade, pode derivar de ação ou omissão ocorridas no mandato anterior. Neste caso, constatado que Dilma Rousseff sabia dos malfeitos e nada fez para conter o "esquema corrupto" na Perobras, o procurador-geral da República poderia determinar uma investigação de eventual prevaricação da presidente, dando causa, em sequência, ao processo de impeachment. Até aqui, conjecturas.
Prognósticos - O ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, afirmou na semana passada que o modelo de desenvolvimento usado pelo governo no primeiro mandato, centrado no estímulo ao consumo, se esgotou. E que agora será preciso uma agenda "pós-ajuste fiscal", que é indispensável. Clarividência.



domingo, 12 de abril de 2015

Comentários do Dia

Ponto fora da curva - Ideli Salvati teve uma postura digna recusando a presidência dos Correios, que lhe foi oferecida pela presidente Dilma Rousseff como prêmio de consolação por tê-la sacado, sem comunicação prévia e de forma estabanada, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, onde alojou Pepe Vargas, afastado da articulação política do governo por conta do desempenho sofrível. Ideli demonstrou hombridade no episódio. A sua recusa ainda não havia sido confirmada quando o artigo de sexta-feira dia 10 (abaixo) estava sendo redigido.

Correção - No artigo do dia 27, sobre Thomas Piketty, o nome de L'École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) foi grafado errado na tradução para o português, agora já devidamente corrigido no texto na página. 

Lucidez - 
O artigo do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan ("A força da realidade II"), publicado na edição de hoje de O Estado de S. Paulo, é leitura obrigatória neste domingo de protestos nas ruas. Link abaixo:

http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-forca-da-realidade-ii-imp-,1668143 


sexta-feira, 10 de abril de 2015

Artigo

Os roedores e a República do compadrio



     No dia em que roedores tomaram literalmente o auditório da CPI da Petrobras de assalto, soltos por um funcionário alegadamente indignado - em ato que pode até ser visto como de mau gosto, mas que tem inegável carga simbólica - o tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, garantiu que jamais se envolveu em pagamentos de propina.
   É difícil imaginar que as informações prestadas em delações premiadas por vários acusados na Operação Lava Jato, e que apontam no sentido diametralmente oposto, possam ser todas elas falsas.
     Os depoentes acusam o partido de Vaccari, e ele próprio, de receber dinheiro do esquema de corrupção montado dentro da estatal. Aliás, vão além: afirmam, direta ou indiretamente, que o esquema foi estruturado justamente com a finalidade de robustecer financeiramente os partidos ligados à chamada base do governo, PT em especial.
     Por que razão mentiriam esses depoentes, se o preço da calúnia e da falsidade, nesta altura do campeonato, seria a cominação de penas muito mais severas, não está claro. Não faz sentido.
     Vaccari tem o benefício da dúvida que e a Lei penal, com amparo constitucional, lhe garante. Mas isso não impede que a sua manutenção no cargo seja insólita. Que a Lei, no Estado democrático de Direito, preserve o suspeito, o indiciado e até mesmo o réu de uma condenação antecipada e, por isso, potencialmente equivocada e injusta, é mais do que compreensível.
     Fora da esfera judicial, porém, o que deve prevalecer é o critério rígido, sobretudo quando há implicações político-institucionais em jogo. À mulher de Cezar não basta ser honesta.
     O tesoureiro poderia se afastar até o total esclarecimento dos fatos, com a indubitável comprovação - e aqui estou lhe dando todo o benefício da dúvida - de sua inocência e, vá lá, a de seu partido. Sua permanência no cargo destoa do razoável, beira o patético.
     Contudo, como quem mais sofre o desgaste à imagem provocado, de um lado, por sua resistência em sair e, de outro, pela fraqueza de seus pares em exigir que saia é o próprio PT, nada nos resta a não ser aguardar a escalada e o desfecho deste episódio. Ao menos será uma forma (mais uma!) de aferir o quanto os limites do constrangimento político tornaram-se elásticos nos dias de hoje.
     

Não para por aí

    Destoam também da praxe e do razoável, beirando o patético, a destituição do ministro Pepe Vargas da Secretaria de Relações Institucionais e o seu imediato remanejamento para a Secretaria de Direitos Humanos, em lugar de Ideli Salvati. Pepe Vargas foi removido do primeiro posto por não ter sido capaz de fazer uma articulação - missão precípua da pasta que ocupava - minimamente eficiente entre o Planalto e o Congresso.
     Os recorrentes confrontos entre Legislativo e Executivo desde o início deste segundo mandato, com reiteradas derrotas do governo, comprovam a sua incompetência. Um governo recém-eleito e já sem cacife político é uma proeza e tanto. Mas, justiça seja feita, ele teve efetivas contribuições dos colegas e da própria presidente na operação do desmonte.  
     O curioso é que, mesmo com o atestado de ineficiência lavrado em público, Vargas recebeu outro cargo na Esplanada dos Ministérios. Se não teve êxito na primeira missão, a nova nomeação só pode ser  prêmio de consolação e um ensaio, em meio a tentativas e erros, para ver se agora acerta.
     A República do compadrio transformou o Brasil num balão de ensaios -  o que explica o desastre da política econômica no primeiro mandato do atual governo. O mérito - o moral, inclusive - perdeu relevância. Daí todo o pudor em se dizer a Vaccari o que está na ponta da língua: saia!
   Ideli Salvati, que também foi titular das Relações Institucionais com desempenho igualmente sofrível, não tem com o que se preocupar. O seu consolo está reservado: assumirá a presidência dos Correios, conforme convite feito pela presidente Dilma Rousseff esta semana.  
     A articulação política do governo será agora comandada por quem conhece como ninguém as vicissitudes do Congresso, as idiossincrasias dos parlamentares - e não se trata aqui de nenhum elogio. O cargo será acumulado pelo vice-presidente da República, Michel Temer. Homem do ramo.
    Portanto, depois de terceirizar a política econômica, escolhendo para titular da Fazenda um formulador identificado com o pensamento liberal ortodoxo que sempre criticou e desprezou (afinal, para continuar a farra do compadrio, a economia tem que ser tratada com um mínimo de responsabilidade e voltar aos eixos), o governo terceiriza também a condução política.     
     Impeachment branco? Talvez. Mas o governo chegou a este ponto sozinho, pelas próprias pernas, pelos próprios erros

Por Nilson Mello

Em tempo

     A manifestação deste domingo 12 é um ato democrático, legítimo, de desaprovação a um governo irresponsável e distanciado da verdade. 

Em tempo II

   O ex-ministro Tarso Genro está certo quando diz que o PT "tornou-se acessório" no governo. O excesso de protagonismo talvez esteja na origem do problema.


Em tempo III
  
     A presidente Dilma Rousseff disse esta semana que a Petrobras "já limpou o que tinha que limpar". Do que se trata? Alienação? Desprezo pela inteligência do contribunte?