sexta-feira, 30 de novembro de 2012


A democracia e o rabo do cão


 
 A democracia é o governo da maioria. O seu fundamento é o de que seria injusto permitir a uma minoria decidir o destino de todos. A contradição é que os melhores, aqueles mais capacitados tanto do ponto de vista intelectual como moral, estão sempre em menor número – ou quase sempre. O que significa que a democracia seria, numa análise radical, o governo dos piores, e exatamente por essa razão também é muito injusta.

Quando vemos os descaminhos das democracias contemporâneas, minadas por “doenças” como assistencialismo, clientelismo e a consequente corrupção, nos perguntamos se essa é mesmo a melhor forma de governo, sobretudo para países em que o sistema educacional ainda não foi capaz de garantir a devida qualificação do eleitor. Mas essa não é uma questão nova, nem exclusivamente brasileira.

Milênios atrás Aristóteles alertava para os riscos de a democracia se degenerar em demagogia ou olacracia. Se a maioria é menos preparada e é ela que governa, ainda que de forma indireta pelos representantes do povo, o resultado é presumível. Eis porque altos índices de aprovação não deveriam impressionar tanto. Pelo menos não deveriam impressionar à minoria que pensa.

Tudo seria facilmente resolvido se a minoria no poder (o governo de poucos ou aristocracia) levasse a missão a sério, qualificando a maioria. Mas não há qualquer garantia – ao contrário – de que os poucos, quando no poder, governarão pensando no interesse de todos. A propósito, Aristóteles dizia também que não raro a aristocracia degenera-se assumindo a forma impura da oligarquia (e aí é curioso notar que no Brasil é a democracia que se traveste em oligarquia).

Ainda assim, não foram poucos os pensadores de boa cepa que procuraram estruturar modelos institucionais que mitigassem a democracia, fazendo com que poucos concentrassem o poder soberano da decisão, em nome da eficácia das ações do Estado. O sincero Hobbes e o ainda mais sincero Maquiavel estão nesse rol.

No século XX o grupo teve um representante de destaque com Carl Schmitt, jurista e filósofo político alemão para quem toda Constituição “democrática” deveria ter um “guardião” com competência para decretar a exceção. Talvez ninguém tenha justificado o papel do ditador com mais sofisticação do que Schmitt, o que acabou sendo trágico, pois suas ideias fortaleceram o III Reich. E aqui um paradoxo: um povo dos mais ilustrados se transformou em massa de manobra.

Considerando prós e contras dessas variáveis, um estadista do século passado lúcido e de espírito muito prático cunhou uma expressão que permanece vigorosa: “a democracia é imperfeita, mas ninguém inventou regime melhor”.  A máxima é insofismável, mas não devemos nos contentar com ela. Pois o cão continua correndo atrás do rabo.

 Por Nilson Mello

 

 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Artigo


Genealogia do voto


                                                                Ministra Carmem Lucia
    
     Alto índice de abstenção é um fenômeno que pode dar margem a interpretações e diagnósticos diametralmente opostos. Nas 50 cidades onde houve um segundo turno nas eleições municipais este ano, as abstenções alcançaram o índice recorde de  19%. Isso significa que dos 31,7 milhões de brasileiros aptos a votar na ocasião, seis milhões prefiriram nem ir às urnas. Não é pouco: uma metrópole inteira como o Rio, ou a metade da população de Portugal.

     Se somadas as abstenções aos votos nulos e em branco, que totalizaram 7,44% do total (ou 2,3 milhões de pessoas), o índice chega a 26% do eleitorado. Sugere o senso comum que votos nulos, via de regra, indicam rejeição à classe política, aos postulantes e aos governantes. Exceto nos casos em que decorre de erro grosseiro – resultado da inépcia do prórprio eleitor - algo impossível de se identificar ou confirmar.

Os votos brancos, por sua vez, podem até ser também decorrentes de displiscência, mas mais razoável é supor que revele acomodação do eleitor ou, na pior das hipóteses, indiferença com o cenário político, o que não deixa de ser uma aprovação oblíqua, muito embora, pela legislação, esses votos não possam ser computados para nenhum partido ou candidato. O aspecto estatístico, que dá margem a elacubrações como a do presente artigo, é, na verdade, o que expressa o valor dos votos nulos e brancos.

Abstenções, contudo, podem traduzir anseios mais complexos e sutis. Para um observador otimista, a fuga das urnas poderia significar um alto grau de satisfação com o desempenho dos governantes e com os serviços prestados pelo Estado, o que desencojararia a alternância de poder e a mobilização para tanto. Se no branco a aprovação é escamoteada, na abstenção ela seria explícita. 

O saneamento é de boa qualidade, bem como a educação, os transportes, a saúde e os demais serviços públicos em minha cidade, então por que eu devo ir votar? Mesmo obrigado, não irei, pensaria o satisfeito.

Em caso das eleições federais e estaduais, a medida do grau de satisfação pode ainda ser dada por fatores como bons indicadores na economia e na segurança pública. E em todos os casos, nos pleitos municipais, estaduais e federais, pela capacidade do governante ou postulante de seduzir e, por que não dizer?, ludibriar o eleitor – postura cujo êxito dependerá diretamente da capacidade crítica dos votantes.

Para o pessimista, por outro lado, a abstenção é prova cabal do enfado do eleitor com “tudo isso que está aí”. Sou obrigado a votar, mas votar em quem? E por quê? Nessa linha de raciocínio diríamos que, no voto nulo e no voto em branco, o eleitor tenta fazer o seu protesto – um protesto indireto e sem qualquer efeito, vá lá, mas ainda assim uma tentativa de manifestação crítica. Já a abstenção seria a desilusão completa com a política.

Para o analista pessimista, a abstenção numa democracia de voto obrigatório, ou, para usar o eufemismo tão caro aos constitucionalistas, num sistema em que o voto é um “direito-dever” (pode haver contradição em termos maior que essa?), representa o momento em que o eleitorado joga a toalha de vez, tamanho o desânimo.

Sem descartar a possibilidade de a robusta estatistica da abstenção ter sido decorrência de falhas de recadastramento, a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Carmen Lúcia Rocha, acredita que a fuga das urnas é preocupante porque põe em risco o princíppio da representatividade, pilar do sistema democrático.

A ênfase da precoupação da ministra, por força da função, se dá em relação a um princípio que, para todos os efeitos, é uma ficção. Pois, num universo de baixa escolaridade, a representatividade não se traduz em qualidade. E mesmo com altos índices de comparecimento às urnas, nada mais significa do que um contingente maior de pessoas sujeito a se transformar em massa de manobra eleitoral.

O que corrói a representatividade no Brasil não é a abstenção, ma o seu vício de origem, ou seja, o perfil do votante, agravado pelo voto obrigatório.


Por Nilson Mello


P.S.: Uma pessoa que lê regular e atentamente este Blog (?!), a quem muito prezo, me recrimina por abusar das vírgulas nos textos. Prometo melhorar.


    

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Artigo

                                                            Platão

A democracia das massas

    Outra eleição terminada no que se convencionou chamar uma das “maiores democracias do planeta” - a maior certamente do hemisfério Sul. Em números ao menos a propaganda ufanista está correta. Mais de 138 milhões de eleitores estavam aptos a votar este ano no Brasil para escolher os governantes de 5.568 municípios. Foram 15,6 mil candidatos a prefeito e 449 mil a vereador.
O país - reconheça-se - organiza um pleito de massa de forma pacífica e com tecnologia de ponta não empregada nem nos Estados Unidos, onde alguns votos da eleição presidencial desta última terça-feira ainda estão sendo contados manualmente, embora o resultado final, e irreversível, já seja conhecido.
O ufanismo – esse vício nacional – também pode alardear que, enquanto nos Estados Unidos ainda se vota com cédula de papel, aqui já inauguramos a era da biometria, o que garante maior precisão estatística e menor risco de fraudes. Quase 300 mil municípios em 24 estados usaram o sistema de reconhecimento digital nessas eleições municipais para identificar 7,8 milhões de eleitores.
De números que embalam o entusiasmo para a transcendência de ideias que nos lançam na realidade concreta. O desafio da democracia brasileira, assim como o de qualquer outra, não é de quantidade, mas de qualidade. Ou melhor, de quantidade conjugada com qualidade. O problema que se impõe, aqui, como na China e nos cantões suíços, é de como produzir governantes e classe política qualificados.
Todavia, e isso é óbvio, o desafio é maior se consideramos que hoje, cada vez mais, a escolha cabe às massas. Maior ainda quando (e aqui, deixemos o ufanismo de lado), reconhecemos que o eleitor brasileiro, em sua esmagadora maioria, tem baixa escolaridade e, talvez por conseqüência, reduzido senso de urbanidade e civilidade, baixo compromisso com o dever, pouco rigor no compromisso das tarefas, entre outras, digamos, mazelas. Essas características são os parâmetros que se refletem nos dirigentes eleitos. Eles são o que somos!
O bem é para onde tendem todas as coisas, diria Aristóteles. Desde, é claro, que as causas finais estejam fundadas na ética. E pode haver fundamento ético sem educação? A preocupação com a qualificação dos governantes já dominava os pensadores da Grécia, berço da democracia, séculos antes de nossa era. Por volta do ano 367 a.C., Platão tentou moldar o caráter de Dionísio II, jovem rei tirano da província de Siracusa, na Cecília.
Platão queria testar sua teoria, a de que uma educação científica consistente poderia transformar um governante num estadista esclarecido. Anos mais tarde, o próprio Aristóteles, discípulo de Platão, viria a ser tutor de Alexandre, o Grande, da Macedônia. O sucesso de ambos os mestres foi relativo. Suas missões teriam sido certamente facilitadas se os governantes a serem “moldados” fossem da própria Atenas, onde somente uma elite (social, mas, sobretudo, intelectual), participava do poder.
Não se trata aqui de propor o restabelecimento de um dualismo social como o que prevalecia na Grécia clássica, dividindo seres superiores e inferiores, e justificando até a escravidão. Liberdade e bem estar material são e devem ser conquistas universais da humanidade. Mas isso não nos impede de refletir sobre como uma democracia das massas pode ser efetiva na concretização desses ideais se não tem a educação como o seu principal pressuposto.
Nesse contexto, uma questão específica salta aos olhos: num universo de milhões de eleitores de escassa educação é razoável impor o voto obrigatório, ou isso equivale a criar uma massa de manobra sujeita às piores práticas políticas, como o assistencialismo e o clientelismo? Se a resposta objetiva for negativa, quem pode ajudar a mudar o quadro é a classe política eleita.  
Há interesse para tanto?

Por Nilson Mello


           Comentários do dia

Vencedores em 2012 – Este Blog recebeu severas críticas nos últimos dias pelo artigo do último dia 1º, que apontou Lula e o PT como os maiores vencedores do pleito municipal. Nas críticas, o que sobressaía era que o PSDB, principal partido de oposição, teria obtido o mesmo número de prefeituras de capitais (03) que o PT no segundo turno. Bem, os tucanos ficaram com Manaus, Teresina e Belém. O PT, com São Paulo e mais João Pessoa e Rio Branco. Quem venceu?

Joaquim Barbosa – O reiterado destempero do ministro Joaquim Barbosa desanima aqueles que têm apoiado um julgamento exemplar para todos os envolvidos no mensalão, o esquema montado pelo PT para comprar congressistas. A conduta é incompatível com a serenidade que deve guiar qualquer magistrado, sobretudo um ministro do Supremo.

Royalties – O Rio de Janeiro tem todo o direito de lutar pela manutenção dos royalties do petróleo, uma vez que tem o ônus da exploração. Mas a imprensa poderia aproveitar e fazer um raio-x da questão, mostrando, em detalhes, como é gasta essa dinheirama no Estado do Rio e em seus municípios. Há cidades contempladas com royalties que sequer contam com hospital público. Esses bilhões há anos vêm sendo desviados, em detrimento da população. O ralo sem fundo faz a festa dos políticos e governantes ora injuriados com o fim da festa.




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Artigo

                                                       Lula e FHC 

A verdade dos fatos

A foto do aperto de mãos entre o atual prefeito e o prefeito eleito de São Paulo estampada nos principais jornais de ontem (quarta-feira 31) é emblemática e diz muito mais que o texto que ela encima. A leitura gestual nos mostra claramente que não foi um cumprimento meramente protocolar, de passagem de bastões entre o que chega e o que está saindo.
Numa eleição que teve como marca o hibridismo e a ambiguidade (artigo de 19/10 deste Blog), e cujo ponto de partida foi um efusivo encontro de Lula e Maluf em torno do próprio Haddad, selando uma aliança antes inimaginável, o desfecho até que está dentro de um script bastante previsível. Até porque, o que poderá mais surpreender na volatilidade política brasileira?
Falta de consistência programática pode até não ser um problema em si, mas tem um desdobramento preocupante. Sem programas, projetos e ideias, oposições passam a ser prescindíveis ou dependerão, cada vez mais, de lideranças carismáticas. Lideranças que, por sinal, não existem. Democracia sem oposição é um contra-senso. E democracia que orbita personagem carismático acaba sendo um arremedo de democracia. Mas já há quem ache que democracia nem é tão necessário assim.
Muito bem, o principal aliado e suporte de governo da administração petista de Fernando Haddad poderá ser o PSD do atual prefeito Gilberto Kassab. O mesmo partido que era governo e que, durante a campanha, foi duramente criticado pelo candidato ora eleito. O PSD e essa administração que chega ao fim arrastando alto índice de desaprovação tinham como candidato próprio justamente o maior adversário do PT.
Pode-se atribuir a derrota de José Serra à sua grande rejeição (mais de 50%) junto ao eleitorado paulistano conjugada à avaliação ruim da administração Kassab. Isso, porém, já não importa. O que importa é saber que Serra é o grande derrotado das eleições de 2012. E que, ainda que ingresse no PSD, como chegou a insinuar, por perceber o desgaste no PSDB com suas sucessivas derrotas, dificilmente voltará a ter o protagonismo de antes. Sobretudo num partido que tende a ser cada vez mais aliado do governo federal. Como é difícil imaginar Serra em posição secundária e dócil ao PT, e o PSD, como oposição de fato, o projeto não tem o menor risco de dar certo. Por sua vez, a permanência de José Serra no PSDB poderia significar a transferência do senador Aécio Neves para outra legenda, com o intuito de se lançar candidato a presidente.
Mas para onde iria? PMDB? Difícil imaginar que o PMDB queira abrir mão da cômoda posição de aliado de plantão para se arriscar numa candidatura própria. Além do mais, hoje já é até difícil imaginar que Aécio Neves queira mesmo se candidatar à Presidência da República. Com Serra, Aécio e o governador Geraldo Alkmin, nada mudará no PSDB: nem os “protagonismos”, nem as ideias.
De qualquer forma, se Kassab e seu PSD ganhará espaço no cenário nacional, governando cidades - incluindo uma capital - que totalizam 12 milhões de pessoas, será no papel de força auxiliar. Já o PSB do governador Eduardo Campos, que conquistou o maior número de capitais (5) e ACM administrará cidades que totalizam mais de 20 milhões de habitantes, consolida-se como força emergente. Como é da base do governo, isso significa que o maior adversário do PT nas eleições presidenciais de 2014 provavelmente não virá da oposição de fato.
O contexto não deixa dúvidas de quem foi o verdadeiro vitorioso em 2012. Governando cidades que totalizam 37 milhões de pessoas, e entre elas a maior capital do país, o PT saiu mais forte das urnas – sobretudo se considerado que outros vencedores, como PSB, PMDB e agora o PSD são seus aliados. O ex-presidente Lula, ao escolher um azarão que sairia vencedor em São Paulo, confirmou sua acuidade política e o seu prestígio. O PT deve a ele a sua vitória.
Análises tortuosas, publicadas diariamente na imprensa, têm ido em sentido contrário ao das conclusões acima. Mas, em análise conjuntural, não devemos confundir a realidade dos fatos com os fatos que idealizamos. Ou alguém acha que a vitória de ACM Neto (DEM) em Salvador foi uma grande conquista da oposição?

Por Nilson Mello