sexta-feira, 29 de junho de 2012

Artigo

Eleição municipal com ou sem ideologia


    Na propaganda eleitoral, não faltarão pesquisas (e marqueteiros) a indicar aos candidatos o que o eleitor quer e precisa ouvir, como uma trama de folhetim que se constrói progressivamente. O discurso eleitoral não é um produto pronto e acabado, mas moldado de acordo com os humores captados pelas sondagens. Genuíno ou não é o que se terá, e é o que se faz em qualquer parte do mundo.

Como surpresa de última hora, por força de decisão apertada na tarde desta quinta-feira, revertendo posição definida em março, o TSE (atendendo a recurso do PT) trouxe de volta ao pleito os candidatos cujas contas foram reprovadas nas últimas eleições. Mas, atenção: como alertou um âncora de rádio hoje de manhã, ninguém é obrigado a votar neles.

Desnecessário lembrar que em campanhas municipais, por regra, o foco deve estar nas questões locais, embora sob a influência – e com repercussão nestes – dos grandes embates nacionais. Em qualquer caso, a julgar pelo histórico, mensagens com efetivo conteúdo programático ou proposições exequíveis serão peças raras.

Como de praxe, não faltarão promessas embaladas em boa dose de populismo; discursos amparados no voluntarismo e nos atos de vontade. As articulações que definiram as coligações na reta final do prazo estabelecido pela legislação eleitoral - e que culminaram com uniões até bem pouco inimagináveis – corroboram com essa expectativa.

No caso de São Paulo, contudo, a nacionalização da campanha, em virtude da participação de um presidenciável como candidato a prefeito e de um ex-presidente como cabo-eleitoral de “luxo”, deve dar outra dinâmica e dimensão ao pleito.  

As articulações foram surpreendentes tanto no gênero quanto no número de partidos coligados. Na categoria gênero, destacam-se os neo-aliados. A parceria entre a “esquerda” de Lula e a “direita” de Maluf, em prol de Fernando Haddad em São Paulo, e o casamento dos até então arquiinimigos Maia e Garotinho, em benefício da candidatura dos filhos Rodrigo e Clarissa, no Rio de Janeiro, passaram para o eleitor (aquele 1% da população que não apenas lê os jornais, mas sabe interpretá-los) a impressão de que os políticos são capazes de fazer qualquer negócio.

Como já lembrado neste Blog, a despeito das distâncias aparentes de conteúdo, uniram-nos o método. A vontade de estar no “Poder” (pragmatismo) somada ao tipo de discurso para chegar lá (populismo) sintetiza esse método. No quesito quantidade chama a atenção o extraordinário número de partidos coligados em apoio a candidatos da situação – o que prova o quanto estar no Poder é o que realmente interessa, não importando o conteúdo. No Rio, o prefeito disputa a reeleição com o apoio de 19 legendas e, obviamente, com ampla margem de favoritismo.

A máquina pública, não obstante todas as restrições legais ao seu emprego durante as campanhas, sempre desequilibra o jogo em favor do candidato à reeleição. Não seria então mais justo estabelecer mandatos mais longos, porém, sem a possibilidade de recondução? Assunto para outro artigo.

Oportuno agora é entender onde está a ideologia referida no título deste texto. Pois bem, a ideologia pode ser encontrada no substrato. É lá que ela deve ser procurada. Não é fácil identificá-la porque ela avança de forma subjacente em meio a qualquer discurso, campanha ou embate político. Não raro, e no Brasil muito frequentemente, vem com sinais trocados, aumentando a confusão.

Empregar os termos “direita” e “esquerda” pode ser démodé – quase tanto quanto o próprio termo démodé. Mas é um parâmetro útil, pois facilita a análise. Então, seguindo a extrema simplificação, podemos dizer que estariam na esquerda políticos e partidos que a rigor defendem, em menor ou maior grau, a transferência dos meios de produção para as mãos do Estado. (Na verdade, a transferência dos meios de produção do particular para o Estado seria, na concepção marxista, uma consequência da abolição da propriedade privada).

Foi com base neste critério simplificado que, na aliança heterodoxa de São Paulo, Lula foi colocado à esquerda e Maluf à direita no espectro político. Sem qualquer juízo de valor. Maluf, contudo, considerando-se injustiçado, já anunciou que é mais de esquerda do que Lula. Tudo bem.

Mas, e no restante da campanha, essas distinções são simples rótulos? Vejamos: o PV é um partido de esquerda. Declaradamente, é um partido de orientação socialista. Pois bem, a principal proposta da candidata do PV à prefeitura do Rio, anunciada com pompa esta semana, é a regularização fundiária, ou seja, a formalização de títulos de propriedade.

Isso pode significar que o PV – ou a sua candidata - pensa ser de esquerda, mas, em contradição com os ideais socialistas que alega representar, não consegue conceber o progresso do homem e da sociedade sem o instituto da propriedade privada. Pode ainda significar que o PV, assim como outros partidos considerados de esquerda, vê essas incongruências como uma saudável evolução do próprio socialismo – que, neste caso, por definição, seria qualquer outra coisa menos socialismo. Ou então, em sentido contrário, entende essa concessão como uma etapa de um objetivo maior e mais distante. Por fim, a promessa, a despeito de estar baseada em experiências de sucesso em outros países, pode simplesmente ter significado mais um discurso demagógico em busca de votos.

Prepare-se, então, eleitor, para julgar as muitas incongruências que ouvirá nos próximos meses, lembrando que algumas delas podem até ser bem-vindas.



Nota: Para Karl Marx, a justiça social é um problema de caráter estritamente econômico. Problemas econômicos exigem soluções de cunho econômico. A centralização da propriedade e da produção na mão do Estado, num primeiro momento, e o comunismo dos bens (fim da propriedade privada), no momento seguinte, promoveria a igualdade entre os homens, pondo fim a toda injustiça social. A tese é vigorosa, não fosse um aspecto primordial: pressupõe a proeminência, como resultado de uma nova ordem institucional (Ditadura do Proletariado), de indivíduos capazes de renunciar aos seus próprios anseios; de ignorar as diferenças inatas (de gostos, de caráter, de intelecto etc) em relação a todos os demais; de tolerar a igualdade absoluta ainda que absolutamente desiguais. O Estado, por meio da coerção, até pode estabelecer uma igualdade formal absoluta expressa em leis. Mas não tem como alterar a natureza, que continuará a produzir indivíduos imperfeitos, com virtudes e vícios distintos, e, no final das contas, muito desiguais entre si.
             Retomaremos o tema.

 Por Nilson Mello








sexta-feira, 22 de junho de 2012

Artigo


Populismo e pragmatismo

  
Alianças se fazem entre opostos, pois entre os iguais são dispensáveis. A máxima é de uma obviedade indiscutível. Se a união entre o PT de Lula e o PP de Paulo Maluf, em prol da candidatura do ex-ministro Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo, causou tanta estranheza, é porque o eleitor espera, no final das contas, um mínimo de coerência programática e ideológica. Mas a linha tênue entre ingenuidade e falso moralismo contribui para confundir as análises em torno da questão.

Não se trata nem de apontar onde está o “mal” e o “bem”. Primeiro, porque ambos os conceitos são, para nossa infelicidade (e não só no Brasil, mas alhures), relativos e extremamente voláteis quando se trata de política. Segundo porque, em termos de manobra política, não há “malfeito” que um dos “cônjuges” deste aparentemente insólito casamento não tenha cometido do qual o outro não seja ao menos suspeito.

Bobagem dizer que um lado sempre foi o representante da elite enquanto o outro é a expressão da vontade popular, do “progresso político” e dos “avanços” de que população tanto precisa, como queria Luiza Erundina.  A ex-prefeita, hoje deputada, despediu-se da chapa que tende a ser derrotada nas eleições com conveniente tom de indignação. 

De certo, apostar na derrota do candidato do PT é prematuro. Contudo é o risco mais calculado diante das circunstâncias, sobretudo se considerada a distância que separa Fernando Haddad do candidato que hoje lidera as pesquisas. A experiência administrativa e o prestígio junto ao eleitor paulistano também são dados a considerar. Mas “bem” e “mal” são, como dito, conceitos relativos.

Luiza Erundina, cuja passagem pela prefeitura foi controversa do ponto de vista da gestão, apostou na coerência biográfica. Desnecessário explicar porque isso significa igualmente uma postura pragmática. Apostas são, por definição, a antítese da certeza. Mas, certamente, entre disputar o pleito, com reduzidas chances de vitória, tendo como aliado de ocasião um antigo desafeto, e manter-se fiel à sua biografia – por mais relativo que, no caso, isso também possa significar - tomou o passo mais seguro.

Ao eleitor resta agora lançar um olhar realista para o episódio. Ainda que renegue a necessidade de uma postura partidária pragmática - tendo em vista os objetivos políticos a serem alcançados - ou que a conceba, mas dentro de determinados limites, cabe reconhecer, neste momento, que os desiguais envolvidos na aliança são mais iguais do que aparentam.

Apesar da estranheza quanto à forma, marcada por um discurso mais ideológico ou panfletário de um em oposição ao outro, sobretudo no passado, os pontos de convergência são inegáveis. O populismo sempre foi marca registrada de ambos. Se Maluf foi o “candidato” das elites, nunca deixou de ser popular, ou populista. Na verdade, não teria se saído vitorioso em diferentes pleitos se assim não o fosse - fato que, vale salientar, em nada eleva a conduta do eleitor. Incoerência em prol do pragmatismo é outro traço em comum. 

No mais, partidários de ambos não devem se sentir indignados ou traídos. Primeiro, porque motivo para a indignação já houve em muitos outros episódios, mais desconcertantes, sem que se percebesse manifesta desaprovação. Segundo, porque, nesta altura do campeonato, não é dado a nenhum brasileiro minimamente informado (absoluta minoria que não apenas lê os jornais, mas consegue interpretá-los) o direito de ser ingênuo. Como querer que políticos populistas não sejam pragmaticamente incoerentes?

Quem acredita que uma das partes representa o “bem” e a outra o “mal” nesta história deve deixar o falso moralismo de lado. Tudo posto, resta dizer que limites na política – para articulações entre opostos e para tantas outras coisas mais, como incoerência programática – só virão por meio da qualificação daquele que vota. Não adianta se preocupar com a classe política enquanto o eleitor permanece refém do populismo.

A questão é: quem vai qualificar o eleitor, livrando-o do populista, se é a classe política quem decide? 


Por Nilson Mello


sexta-feira, 15 de junho de 2012

Artigo


Contas-sujas, moral e direito.
Já vimos em outros artigos neste Blog que princípios a priori podem e devem servir de parâmetro para uma conduta ética. E por isso mesmo devem ou podem funcionar como “reserva de valor” que respalda a própria Lei. 

Não seria errado dizer que problemas institucionais, como escândalos de corrupção sucessivos, têm sua origem, na verdade, em crises de valores, e não em deficiências da norma positiva. São anomalias de fundo e não de forma. 

Princípios a priori podem ser encontrados por meio do esforço racional, ou a partir de uma conduta espiritual, atrelada à religiosidade. Muito frequentemente, pela conjugação dos dois caminhos. A conduta correta também pode ser resultado da prática, dos chamados “recursos empíricos”, significando, neste sentido, um esforço prático permanente em busca do “acerto”. 

Mas, como tem sido notória a participação em escândalos de corrupção de personagens não apenas de reconhecidos recursos intelectuais e empíricos, como declaradamente religiosos, razoável é supor que a índole - ou seja, características inatas a cada indivíduo – seja ponderável nos recorrentes desvios morais a que assistimos. 

Neste sentido emblemáticas foram as imagens gravadas em um gabinete de Brasília, e divulgadas há alguns anos, de dois parlamentares abraçados a um corruptor, os três orando e agradecendo a Deus pela propina recebida. No caso, a falta de recursos intelectuais, empíricos ou de índole, mesmo, fez da imoralidade da propina uma dádiva.

O certo é que o raciocínio especulativo nos ajuda a entender que moralidade não se confunde com juridicidade – ou, ao menos, tem muito menos a ver do que imaginamos. Com efeito, são duas partes de um mesmo todo unitário, que se inter-relacionam, mas não se confundem.

O agir ético tem como motivação o cumprimento do dever pelo dever. O agir jurídico, por outro lado, pressupõe outras razões: está associado ao temor pela sanção e à prevenção de penalidades por parte das autoridades públicas. 

Em suma, enquanto juridicidade tem a ver com coercitividade, moralidade depende, em sentido oposto, de autonomia, de liberdade de escolha. Reconhecida a distinção, por óbvia, não custa lembrar que caminhamos no Brasil para a estruturação de um arcabouço normativo a cada dia mais coercitivo e autoritário. Instituições progressivamente mais rígidas e inflexíveis eliminam paulatinamente a autonomia da vontade, sem, contudo, fomentar uma sociedade de conduta eticamente mais saudável.

Onde está a origem do mal - na ausência de recursos intelectuais e espirituais ou na própria índole - é uma questão a se investigar. Por ora, convém não perder de vista a perspectiva do avanço sobre nós da coerção na proporção inversa da diminuição da moralidade. Ainda que as normas venham se tornando mais rígidas em nome da moral, elas são o maior sintoma de imoralidade. 

O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, agindo com rigor normativo que denuncia a imoralidade, anunciou no início deste mês que não permitirá o registro daqueles candidatos que tiveram as contas da última campanha reprovada pelo Tribunal de Contas do Estado. Quase 500 nomes estão na lista dos “contas-sujas”. O TRE agiu de forma profilática e com amparo na Lei da Ficha Limpa. Dentro das circunstâncias, que seja assim. 

O rigor legal está em alta; a moralidade, não. Cidadãos tutelados, com reduzido grau de autonomia, podem construir uma sociedade eticamente saudável? Esta é a pergunta a ser respondida, pois a combinação de juridicidade excessiva com baixa moralidade pode ter como desfecho um novo gênero de anomalia institucional, um totalitarismo erguido dentro da legalidade.

 Lembremos que o autoritarismo, ainda que institucionalizado, representado pelo excesso legal, pelo ativismo estatal, estará sempre a serviço dos imorais. Os éticos dele não se aproveitarão. Eis o risco que corremos ao restringir a liberdade individual.

Por Nilson Mello


terça-feira, 5 de junho de 2012

Comentário do Dia



A busca da competitividade

Este Blog faz uma pausa dos temas políticos para falar de economia. No decorrer de dois anos, governo e lideranças empresariais manifestaram preocupação com os efeitos do persistente recuo da cotação do dólar sobre o setor exportador brasileiro. Em fevereiro passado, o dólar acumulava queda de 9,10% ao ano, expondo ainda mais a falta de competitividade de nossas empresas e obrigando o governo a adotar medidas para tentar conter a desvalorização da divisa americana.
Eis que agora, contudo, a renitente crise financeira europeia leva investidores em todo o mundo a se proteger do risco comprando dólar, o que tem provocado a sua rápida valorização em todos os mercados.
Como assistimos no decorrer de todo o mês de maio, essa inversão de movimentos empurrou o governo para uma posição ambígua, embora compreensível. Ao mesmo tempo em que ainda não desarmou as medidas que visavam a inibir a queda da moeda americana, em especial a elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o Brasil foi obrigado a fazer fortes intervenções no câmbio.
Em menos de uma semana, o Banco Central chegou a vender mais de R$ 4 bilhões das reservas nacionais, para evitar uma desvalorização ainda maior do real frente ao dólar. A previsão da maioria dos analistas é que esse movimento perdure. O “cobertor” não chega a ser curto para cobrir as duas pontas, até porque as reservas são altas, mas a tarefa exige sintonia fina. A questão é saber se, diante da mudança de rumo, convém manter as medidas anteriores.
Se por um lado um dólar muito baixo tira competitividade das empresas nacionais, já severamente afetada por questões estruturais, burocráticas e legais, por outro sabemos que o dólar muito elevado gera fuga de investimentos com efeitos negativos inclusive sobre o controle da inflação.
A estabilidade de preços internos depende em grande parte da entrada de produtos estrangeiros a preços competitivos, o que também estimula ou deveria estimular, indiretamente, a busca de eficiência e produtividade em nossa economia.
Em meio às turbulências no mercado de câmbio, uma conclusão parece óbvia. O Brasil precisa ser competitivo independentemente da cotação do dólar. Até porque, os instrumentos com que o governo conta para compatibilizar sua política econômica com a cotação de divisas estrangeiras são e serão sempre limitados, por maiores que sejam nossas reservas e por mais engenhosas as medidas para-fiscais engendradas no Ministério da Fazenda.
O câmbio depende de fatores externos nem sempre corrigíveis ou passíveis de compensação por mecanismos internos. Mecanismos esses que acabam por gerar outras distorções na economia.
Tudo considerado, passemos então a dedicar mais tempo – e a engenhosidade de nossos competentes tecnocratas – na busca de providências  que permitam a nossas empresas alcançar melhores patamares de eficiência e produtividade a fim de concorrer em igualdade de condições com os principais players internacionais.
Centremos nossas baterias nos obstáculos internos, nos entraves estruturais e legais    que minam a competitividade de nossas empresas. Concentremo-nos naquilo que só depende de nossa vontade e de nosso empenho. Para que nossas empresas reconquistem mercados precisamos eliminar os altos custos representados por uma infraestrutura logística deficiente, uma tributação excessiva, uma burocracia contraproducente. Precisamos investir fortemente em educação e qualificação de mão de obra.
Um segmento que mereceria especial atenção é o de logística portuária. Sabemos o quanto seria importante ampliar os investimentos em terminais, eliminando gargalos, o que implica, certamente, ajustes nos marcos regulatórios existentes. É esta a realidade que podemos e devemos mudar. Porque, ao contrário da cotação do dólar, depende de fatores e decisões que estão ao nosso alcance, sem interferências ou abalos externos.


segunda-feira, 4 de junho de 2012

Comentário do Dia

     A prática da reflexão - Em diferentes postagens analisamos a importância dos valores fundamentais na orientação da conduta política (princípios a priori). No artigo da última sexta-feira, a ênfase se deslocou dos princípios orientadores para o exercício da ética com base em recursos empíricos. Hoje, publico (abaixo) comentário de Vera Cristina Andrade Bueno, que traz luz ao debate.

    "Depois de ter lido o seu texto, com o qual concordo, pensei o seguinte: 
    Se 'metafísica' quer dizer algo relacionado a Deus, nem a política, nem a moral têm algo a ver com ela.
    Mas, se 'metafísica' quer dizer algo relacionado à nossa racionalidade, então, a moral e a política (creio) têm muito a ver com ela, pois, só seres racionais ocupam-se dessas coisas.  
     Isso, no entanto, não quer dizer que, por ter seu fundamento na razão, a experiência e os exemplos possam, nesses casos, ser dispensados.  Muito pelo contrário, ninguém nasce com a sua razão desenvolvida.  E mesmo que consideremos que, desde criança, o ser humano saiba distinguir o certo do errado, como sabe distinguir a mão direita da esquerda, como afirma Kant*, a prática e a reflexão são necessárias. 
     Acontece que os exemplos que o ser humano tem diante de si, em sua maioria, não condizem com o sentimento (de distinção) proveniente da própria razão e, assim, ele vai deixando de levá-lo em conta (para evitar conflitos).  
    Com isso, a razão humana, e as suas exigências, além de não ser desenvolvida, é desvirtuada.  
    Ainda que a prática e os exemplos sejam necessários, eles não são suficientes para dar fundamento à moral (e à política).  É preciso algo mais e esse algo tem a ver com princípios que não são empíricos, mas a priori e, que, nesse sentido, têm a ver com a metafísica.  
   Creio que o que falta ao ser humano, em sua prática, é reflexão.    Sem ela, ele deixa de respeitar o sentimento de justiça e de correção que, a princípio, lhe são próprios como ser racional, e passa a agir injusta e erradamente.  Quando isso acontece, as decisões morais e políticas passam a ser pautadas apenas pelos interesses particulares, não por aqueles publicos e universalizáveis e a razão, em vez de ser princípio, é apenas meio para a realização de fins que não são os dela." - Vera Cristina Andrade Bueno

*Cf. Kant, I. Crítica da razão prática.  Trad. V. Rohden, São Paulo: Martins Fontes, 2003, pg. 277

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Artigo



O exercício da ética (na política?)

     A ética não possui qualquer vínculo metafísico, afirmam autores como Eduardo C. B. Bittar e Guilherme Assis de Almeida (*) preocupados em encontrar o eixo comum à moral, à justiça e ao direito. Acreditam que a conduta ética, que deveria  contaminar o senso de justiça e, por extensão, as leis (que seriam as normas resultantes dessas percepções) exige empenho árduo.
     Isso significa que a ética não advém de uma revelação divina. Não é crença religiosa. Ao contrário, as religiões é que resultam da idéia de moral que os indivíduos, em conjunto, são capazes de elaborar.  Ética tampouco é característica inata, ou resultante de “experiência sensorial”, mas, ao contrário, atributo construído a partir de recursos empíricos.
     Onde estavam a ética, a justiça e o direito quando o ex-presidente Lula, o ministro do Supremo Gilmar Mendes e o ex-ministro de Estado e também do STF Nelson Jobim resolveram confabular sobre a CPMI do Cachoeira e o processo do Mensalão é uma pergunta que paira sobre nossas mentes nos últimos dias.
     A razão os aconselharia a não levar adiante o encontro. Ao menos, não com a pauta de assuntos prevista. Mas, como já estamos percebendo, não é apenas a razão que informa o que é certo ou errado, o “justo ou o injusto”, para tomar novamente palavras de Bittar e Assis de Almeida. É também a experiência que indica o caminho correto a seguir, uma conclusão que não os exime - muito ao contrário.
     A vivência somada à razão, tendo como síntese a conduta adequada, indicaria que um ex-presidente não deve intervir em assuntos de Estado. Nem em questões jurídicas, sobretudo com reflexos diretos no governo. Em hipótese alguma a intervenção seria eticamente adequada, mas muito menos se feita nos bastidores – o que dá ao contexto um desconcertante ar de clandestinidade.
     Um ex-ministro de Estado e ex-presidente do Supremo deveria resistir à vaidade e não aceitar ser o coordenador de uma reunião com a referida temática, no referido contexto. Mesmo que a experiência – de ter “emendado” à Constituição sorrateiramente e de próprio punho, como já confessou – o induza a pensar que a ética é volátil e que, digamos, os “pequenos deslizes” até compensam se os objetivos forem elevados. A propósito, eram os objetivos elevados?
     Por fim, um ministro do Supremo, ex-presidente do Tribunal, não vai a um encontro, em escritório privado, sem saber qual é a pauta da conversa. Em verdade, não deveria ir jamais, pois não é papel de magistrado, menos ainda de ministro do STF, deslocar-se para banca de advogado. Se ciente dos assuntos que seriam tratados ali, motivo a mais para não comparecer. É o que a razão somada à experiência nos indica.
Mas, aparentemente, os “recursos empíricos” dos três falharam. Ou isso ou obedecem a outra lógica, com parâmetros próprios que evidentemente não são os que motivam este artigo.
     O episódio tem um fato agravante: como as versões são contraditórias, é certo que um dos “amigos” está mentindo. Vale salientar: um ministro do Supremo, um ex-presidente da República ou um ex-ministro de Estado e também ex-presidente da Corte Constitucional está mentindo sobre um episódio que pode ser sumariamente definido como tentativa de interferir no curso de um ou mais processos nas esferas do Judiciário e do Legislativo.
     Consultoria política, ou seja, a argumentação junto a esferas do poder em prol de determinado projeto, programa ou ideia, é prática mais do que legítima. Deveria inclusive ser regulamentada, em benefício da transparência, pois é razoável que a sociedade, ou segmentos da sociedade, busque interagir com a classe política e com diferentes instâncias da máquina pública. Mas ali o que ocorreu, a julgar pelo relato do ministro do Supremo (o mais plausível e realista, embora tardio), foi a tentativa de um acerto insólito (não me ocorre termo mais brando). Detalhe: em consultoria politica lícita, não cabe chantagem nem negociata. 
     Retomando o intróito desse texto, esse não é um debate metafísico - embora alguns de seus personagens se vejam como semi-deuses (ou como o próprio Deus). É da prática da ética que estamos tratando aqui. Tarefa complexa: como falar da conduta de três integrantes da alta esfera da República sem parecer arrogante, tolamente professoral? (e aqui vão pedidos antecipados de desculpa). O certo seria usar este espaço para falar das eleições que se aproximam, mas há ânimo para tanto?
     Vejamos então o que dizia David Hume (1711-1776), igualmente preocupado com a temática:
     “A finalidade de toda especulação moral é ensinar-nos nosso dever, e, pelas adequadas representações de deformidade do vício e da beleza de virtude, engendrar os hábitos correspondentes e fazer-nos evitar o primeiro e abraçar a segunda”.

Entenderam?
    
Por Nilson Mello
      
*Sobre Eduardo C. Bittar e Guilherme Assis de Almeida ver “Curso de Filosofia do Direito”, Ed. Atlas, 9ª Edição.